Detentos de Juiz de Fora produzem as sofisticadas peças de tricô e crochê da confecção Doisélles
Roupas feitas pelos presos vão parar em vitrines de cidades como Paris, Nova York e Tóquio
por Luisa Brasil | 30 de Janeiro de 2013
Os detentos Luiz Paulo Pacheco (à esq.) e Adenílson de Jesus com a estilista Raquell Guimarães.
Em meio aos novelos de lã de todas as cores, homenzarrões de cabeça raspada e tatuagens espalhadas pelo corpo, vestidos com o uniforme vermelho dos presídios mineiros, tricotam sem parar. É uma cena impactante. Com habilidade, as mãos grossas produzem sofisticadas peças que vão parar em vitrines de Nova York, Paris e Tóquio. No total, 35 detentos trabalham para a Doisélles, uma confecção de roupas de tricô e crochê de Juiz de Fora, na Zona da Mata. À frente da iniciativa está a estilista Raquell Guimarães, de 32 anos. Em dezembro passado, apenas cinco anos depois de abrir seu negócio, ela inaugurou um showroom na Place Vendôme, um dos endereços mais elegantes da capital francesa, e foi convidada a participar, junto com outros empresários brasileiros que investem naquele país, de uma reunião com a presidente Dilma Rousseff. “Fiquei arrepiada”, conta a juiz-forense, cheia de orgulho. A história da grife começou quando Raquell estudava moda no Rio de Janeiro e usava as técnicas aprendidas com sua avó em trabalhos da faculdade. Durante um estágio, participou de uma produção para a apresentadora Xuxa e incluiu entre as roupas um casaquinho roxo que havia feito. “Levei um shopping inteiro comigo e ela foi direto à minha peça”, lembra. “Adorou e disse que eu devia investir naquele tipo de trabalho.” O incentivo da rainha dos baixinhos foi o primeiro sinal, mas a estilista só resolveu abrir o negócio depois de, durante uma viagem a Amsterdã, na Holanda, ter cruzado com uma moça vestindo um de seus modelos. Em uma feira na escola, ela havia conseguido vender doze peças - uma delas, a que viu do outro lado do mundo. “Foi muita coincidência.”
Raquell voltou ao Brasil disposta a abrir oficialmente sua empresa, mas deparou com a falta de mão de obra qualificada. Tentou contratar donas de casa que tivessem traquejo com as agulhas, mas não conseguiu montar uma equipe que pudesse dedicar muitas horas ao trabalho. Só depois pensou em procurar a Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires com a proposta de treinar presidiários para o delicado ofício. “Olhei aquela menina loira, linda e rica e pensei que ela só podia ser louca”, recorda a diretora da unidade, Ândrea Valéria Pinto, que acabou persuadida. Em seguida, as duas precisaram convencer as autoridades da Secretaria de Defesa Social a autorizar a entrada das grossas agulhas de madeira na cadeia. Havia o natural receio de que elas, sendo longas e pontudas, fossem usadas como xuxos, a gíria dos presos para um tipo de arma branca. O clima na sala onde trabalham os funcionários da Doisélles, entretanto, é de harmonia - e muita concentração. “Quero sair sabendo algo que possa me abrir uma oportunidade lá fora”, diz Júlio César da Gama, que esperou um ano para conseguir uma vaga no projeto. Graças ao contrato com a confecção, ele deverá passar para o regime semiaberto no fim deste semestre. A cada três dias de trabalho, o detento tem um reduzido em sua pena. Um mês de labuta rende ainda três quartos do salário mínimo, o piso estabelecido pelo governo, que equivale hoje a 508 reais. O dinheiro é passado pela empresária à secretaria estadual, que fica responsável pelo depósito em contas bancárias abertas para cada um deles. Preso há onze anos por tráfico de drogas e com mais sete para cumprir até 2020, Leonardo Siqueira da Silva é outro que se dedica com afinco à tarefa para reduzir o tempo que o separa da convivência com os cinco filhos. “Passei uma vida dentro da cadeia, e o que mais tenho vontade de fazer é sair sem destino curtindo meus filhos”, afirma.
As peças que Silva tricota já viajam para os lugares distantes aonde ele gostaria de ir. Cerca de 70% da produção se destina a países com inverno mais rigoroso do que o do Brasil, como os Estados Unidos. O maior cliente da Doisélles é a rede americana de hotéis de luxo Fours Seasons. Para Raquell, a presença no mercado internacional demonstra que o trabalho dentro da cadeia não é meramente assistencialista. “Ninguém exporta sem excelência no produto”, explica ela. “Estar em uma arara ao lado de uma peça da Armani ou da Prada é uma questão de merecimento.” No Brasil, a marca é vendida em lojas que atendem a classe A. Em Belo Horizonte, pode-se encontrá-la na sofisticada Barbara Bela, em Lourdes. Lá, um dos casacos produzidos na prisão está à venda por 529 reais. Segundo a gerente Margot Angélica Nunes Reis, os artigos fabricados em Juiz de Fora só entraram no catálogo da grife depois de ser aprovados nos critérios de qualidade. “A gente não compra para ajudar; compra porque a roupa é bonita e benfeita.”
Peças da coleção de inverno 2012: na loja Barbara Bela, em Lourdes, um casaco custa 529 reais
A história de sucesso da confecção de Juiz de Fora é também uma história de redenção para seus colaboradores-detentos. Um dos primeiros a serem contratados, Célio Tavares passou para o regime semiaberto em 2010 e foi empregado por Raquell, com carteira assinada. Está sempre atento às últimas tendências. “Em cada vitrine que passo, observo os detalhes e vejo os defeitos e as qualidades das peças”, diz. Ao sair da prisão, Tavares, que era o monitor da turma, passou seus conhecimentos para Luiz Paulo Pacheco. O homem corpulento, de riso fácil e fala mansa, é hoje quem treina os outros presos no manuseio das agulhas e supervisiona a produção. Sua pena vai até 2016, mas poderá ser abreviada por suas tricotadas. Uma de suas maiores alegrias foi ver a cantora baiana Daniela Mercury vestindo uma roupa tecida por ele. “Nunca pensei que uma peça da gente seria usada por uma artista como ela”, comenta, emocionado. Entre as mulheres que Pacheco sonha vestir, há uma modelo especial: “Estou pensando no vestido que vou fazer para minha mãe quando sair daqui”.
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