domingo, 1 de maio de 2011

PRESOS DE PAPEL

PRESOS DE PAPEL WANDERLEY SOARES, REDE PAMPA, O SUL, Porto Alegre, 01 de maio de 2011. Os olhos e o olhar da juíza. Todos pensam que essas coisas terão solução, inclusive os juízes. Ao buscar algo de belo naqueles olhos atrás dos óculos, o poeta notou, com tristeza, que a juíza não estava com o olhar, de passagem sobre ele, como se diante dela, ainda que como réu, ali estivesse um ser vivo. Não um vegetal, mas alguém dotado de inteligência, de livre arbítrio e que poderia até articular palavras sem monitoramento externo. Nada disso a meritíssima percebeu no rápido exame visual que estendeu sobre a criatura que centralizava a cerimônia de julgamento. Para a togada senhora, sentiu ele, estava mais uma das folhas tantas. Quando ela fechou os autos para entregá-los a um auxiliar, fechou a ele também. Ele, como folhas tantas, se foi para a prateleira onde jaziam centenas de outros seres numerados e silentes. Antes de sentar no banco dos réus, convivera com juízes. Acompanhara e até participara de tertúlias enfadonhas, formais, exangues, inexistosas. Observou que os magistrados, tanto mais velhos, menos viam as pessoas. Queixavam-se de que, durante o ano, teriam mais de mil processos para julgar. Jamais se referiam às duas mil almas que estavam contidas nos volumes amarelecidos que maculavam suas unhas manicuradas. Era preciso julgar, julgar e julgar, para desmanchar uma pilha, pois logo atrás viria outra pilha e outra pilha. Mas não se tratava de pilhas de gente, mas de papel. Papel e cada vez mais papel. Não há mistério nisso. Nenhum mistério está contido em "O Processo", de Kafka. "O Processo" tem clareza cristalina. O réu é uma folha de papel. Enganam-se os que pensam que as prisões estão superlotadas de gente. Enganam-se os que planejam construir mais casarões para abrigar gente com tratamento de gente. Os presídios transbordam não de criaturas humanas, mas de papéis, só papéis. São e sempre serão tratadas como folhas tantas até o dia em que forem recolhidas ao arquivo morto. Não há mistério em Kafka, não há seres vivos sendo julgados, pois os seres vivos não vão a julgamento. Há papéis que vão de lá para cá e de cá para lá. Muitos se perdem, vez por outra. Alguns são imolados e, com sorte, há os que conseguem escapar das pastas e das prateleiras e, fingindo-se de gente, ganham as ruas. Por tudo isso, o poeta entendeu os olhos e o ligeiro olhar da juíza. Psiquiatras, psicólogos, psicanalistas debatem "O Processo", de Kafka, como se nele estivessem contidos todos os mistérios do comportamento humano. Entre eles, há os que jamais percorreram os corredores de um fórum. Mas os que se arriscaram em tal aventura sentiram sobre suas cabeças milhares de senhores K. Homens e mulheres com os K nos braços; serviçais com os K empilhados em carrinhos; burocratas tirando cópias de K; o Ministério Público acusando os K; advogados patrocinando os K. E todos pensam que essas coisas terão solução, inclusive os juízes. Anos após, quem renovar essa ronda encontrará as pilhas de cidadãos K ainda maiores. Por tudo isso, o poeta entendeu os olhos e o ligeiro olhar da juíza.

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