sábado, 28 de janeiro de 2012

Elas são acusadas de traficar, roubar e matar. Mas a criminalidade é a primeira característica que têm em comum. Todas essas mulheres estavam grávidas no momento em que foram presas


Elas são acusadas de traficar, roubar e matar. Mas a criminalidade é a primeira característica que têm em comum. Todas essas mulheres estavam grávidas no momento em que foram presas. Hoje, elas vivem no único presídio exclusivo para gestantes e mães com bebês, em Vespasiano, Minas Gerais. Marie Claire visitou a cadeia para mostrar as histórias dramáticas e a rotina delas
Contato A detenta Adriana poderá amamentar a filha até a bebê completar um ano de idade
Duas mães conversam enquanto seus filhos, de oito e dez meses, brincam em uma banheirinha de bebês. Eles batem os bracinhos na água e tentam segurá-las nas mãos. Dão gritos e risadas. Na sombra de um paredão a poucos metros dali, outra mãe amamenta o filho recém-nascido, vestido com um macacão branco e uma touquinha na cabeça. Em um banco, em outra sombra, uma grávida suspende a camiseta para arejar a barriga de quase nove meses.
A cena poderia ter acontecido em uma praça, parque ou clube. Mas se deu em meio a muros de três metros de altura, cobertos por cercas elétricas de alta voltagem e circundados por policiais com armas de fogo de 12 milímetros. As mulheres descritas acima estavam presas na única cadeia do Brasil projetada somente para grávidas e mães com bebês de até um ano de idade, em Vespasiano, nos arredores de Belo Horizonte, Minas Gerais. Inaugurado em fevereiro, o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade abriga 40 mulheres que - em sua maioria - foram presas ao comprar, vender, armazenar ou transportar papéis de cocaína ou pedras de crack. Há também quem tenha roubado um celular, assaltado um banco ou matado por amor. Todas estavam grávidas no momento da prisão.
A criação do presídio vai ao encontro do aumento da participação das mulheres em ações criminosas.


 Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional, a taxa de encarceramento feminina cresce mais rapidamente do que a masculina. Enquanto o número de homens presos dobrou entre 2000 e 2008, a quantidade de presas quadruplicou no mesmo período. 'Assim como a presença da mulher aumenta no mercado de trabalho, também cresce no crime, principalmente no tráfico de drogas. A diferença é que elas não alcançam o status deles na organização criminosa. São meras vendedoras, aviões. Por terem menos poder, são presas com mais facilidade', diz a socióloga Alessandra Teixeira, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
O impacto da prisão da mulher é mais violento para a família do que a do homem. Quando eles são presos, elas costumam manter os vínculos afetivos. Em geral, visitam os parceiros na cadeia, sustentam os filhos e cuidam deles. Mas as detentas raramente recebem visitas dos maridos ou namorados. 'Os filhos ficam abandonados e depois, quando elas ganham liberdade, a família tem dificuldade em se refazer', diz Maurício Campos Júnior, secretário de Defesa Social de Minas Gerais. 'O fato de manter as mães com os filhos na cadeia visa a reforçar esses vínculos', diz. A ideia é que a dedicação integral à criança ajude a florescer o sentimento de maternidade e responsabilidade nas detentas, que deixariam de viver na criminalidade para se dedicar mais à família.
As 40 internas de Vespasiano se alojam em oito grandes quartos. Os berços ficam ao lado das camas das mães. Cinco ou seis detentas e seus respectivos bebês dividem o mesmo espaço. As portas dos quartos nunca são trancadas, mesmo à noite. Há grades somente nas janelas, na porta que divide o alojamento do restante do presídio e na cozinha. No muro do pátio, a célebre citação de Cecília Meireles: 'Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta. Não há ninguém que explique e ninguém que não entenda'. Nas mesas de trabalho das funcionárias, bonecas e bichos de pelúcia. Segundo a diretora da penitenciária, Mariana Theodosakis, os brinquedos estão ali para descontrair o ambiente, previsivelmente carregado pelas sisudas feições das agentes penitenciárias. Não existem salas reservadas para visita íntima, praxe em cadeias masculinas. 'Se elas engravidam, é o governo que tem de arcar com os custos dos filhos. É injusto, eu sei, mas é a realidade', diz o secretário mineiro.
Pequenos cuidados Cenas de afeto das agentes penitenciárias com os bebês
são comuns (à esq.). Wagnéia enfeita a filha com laços nos cabelos

'No tráfico, as mulheres são meras vendedoras. Por terem menos poder, são presas mais fáceis' -Alessandra Teixeira, socióloga
As paredes e muros da cadeia são pintados de cor-de-rosa. As presas usam um uniforme vermelho com a sigla Suapi (Subsecretaria de Administração Prisional) em branco, nas costas. No dia em que Marie Claire esteve no presídio, as detentas acharam que receberiam a visita do Fantástico. Como a revista é publicada pela Editora Globo, confundiram nossa equipe com a da televisão. As mais vaidosas arrumaram os cabelos e enfeitaram os filhos. Fizeram escova e descoloriram as raízes escuras. Usavam brincos, pulseiras e maquiagem: rímel, lápis de
olho, blush, sombra, batom. Alguns bebês tinham laços e fitas nos cabelos. 'Aqui a gente pode ser mais mulher', diz Wagnéia Aparecida da Conceição, 28 anos. Ela usa rabo de cavalo alto e duas mechas da franja caindo sobre o rosto, olhos pintados, perfume e batom pink. Acusada de tráfico de drogas, foi presa no início da gravidez. Ficou em uma cadeia em sua cidade, João Monlevade, interior de Minas. Depois, foi transferida para uma grande penitenciária de Belo Horizonte e, mais tarde, para Vespasiano. 'Não é em toda cadeia que dá para se maquiar. Não podemos ter cosméticos, só o fundamental para a nossa higiene. Quando a gente é presa, não somos privadas apenas da liberdade. Perdemos também o direito à vaidade.' Wagnéia é mãe de Maria Luisa Vitória, sete meses. 'Vitória porque, quando fui presa, fiquei em uma cela com 12 mulheres. Achei que não fosse sobreviver, passava mal todos os dias. Faltava tudo, inclusive ar. Minha filha é meu troféu.' Wagnéia aguarda a decisão judicial para saber o tempo de pena que terá de cumprir.
O marido dela também está preso sob a acusação de tráfico de drogas. Ele não conheceu a filha e o casal não troca cartas. 'Elas passam por uma censura e demoram a chegar.' A irmã cuida do filho mais velho, dez anos, e também vai cuidar da irmãzinha quando ela completar um ano de idade. 'Meu filho não sabe por que estou aqui. Não sei como explicar. Ele já veio conhecer a bebê: achou linda, carregou no colo. Mas não conversamos sobre o fato de eu estar presa nem os motivos que me trouxeram até aqui. Falamos da vida dele lá fora. Só vou explicar a ele o que está acontecendo quando sair daqui.' Quase toda a família conheceu Maria Luisa Vitória, exceto o avô, pai de Wagnéia. 'Ele só apareceu no meu julgamento e chorou o tempo todo. Aquilo me envergonhou muito, as algemas... Não tive coragem de olhar nos olhos dele, abaixei a cabeça. Ele estava arrasado.' Maria Luisa Vitória usa um enxoval preparado pelos parentes de Wagnéia. Mas nem todas as presas têm a mesma sorte. Muitas não recebem visitas de familiares e vestem seus filhos com roupas doadas.
O dia em Vespasiano começa às seis da manhã. Aquelas que conseguem dormir durante a noite - porque o choro dos bebês adentra a madrugada - acordam para amamentar. Em seguida, tomam café da manhã no refeitório, para depois dar banho nas crianças. As responsáveis pela faxina do dia limpam as áreas comuns. Essa também é a hora de cada presa lavar seus uniformes e as roupas dos filhos. Por volta das 11 da manhã, é servido o almoço. Não é permitido fumar na presença das crianças. A cada três horas, as fumantes podem se reunir para tragos longe dos bebês. A tarde é livre para quem quer assistir à televisão, rezar, estudar. É nesse período que evangélicas visitam a cadeia para pregar. A maioria das detentas se reúne em volta delas para acompanhar a oração. Mas apenas uma pequena parte, de fato, presta atenção na pregação. A maioria se distrai com conversas paralelas.
Carinho Ana Cláudia afaga a filha em meio ao varal de roupas lavadas pelas presas

TRISTEZA, SOLIDÃO E ABANDONO
A cabeleireira Sirley Rodrigues Moreira, 25 anos, grávida de nove meses, é uma das que encontraram na fé uma maneira de enfrentar a tristeza na cadeia. 'Sou fechada e quase não converso. Quando me sinto sozinha, rezo.' Usuária de cocaína, ela diz que foi presa ao encomendar R$ 250 do pó para consumo próprio e o de um amigo. Mãe de Rericson, sete anos, que está sob os cuidados da avó, Sirley afirma sofrer de depressão. 'Quando descobri que estava grávida do segundo filho, tomei todos os remédios que tinha em casa. Meu namorado, pai da criança e também usuário, fugiu', diz. 'Comecei a passar mal e me dei conta do que havia feito. Nunca quis abortar. Fiz isso para tirar a minha vida, mas logo me arrependi porque me lembrei do meu outro filho. Liguei para um amigo e ele me levou para o hospital, fiz uma lavagem e fiquei três dias internada.'
Especializada em aplicar mega-hairs, Sirley foi presa em sua cidade natal, Águas Formosas, no Vale do Jequitinhonha, aos sete meses de gravidez. Ficou duas semanas com outra detenta na delegacia local, exclusiva para homens. 'Lá as condições eram desumanas. A cela era um cubículo em formato de L e os nossos dois colchões ocupavam todo o espaço. Aqui eu tenho tudo de que preciso. Durmo e como bem, tenho uma consulta por semana com a ginecologista', diz. 'Mas não tenho como ver meu filho mais velho. Moro longe e a saudade dói demais. Quando me despedi dele, senti vergonha. Eu estava chorando, ele passou a mãozinha no meu rosto e pediu para eu não ficar triste porque prejudicaria o irmãozinho.' A agente penitenciária que ouve o depoimento de Sirley esconde o rosto. Ela não quer que percebam que se comoveu com o relato.
Sirley ainda não foi considerada culpada. Aguarda o julgamento dentro da prisão. Quando entrar em trabalho de parto, será levada a um hospital da região. De volta a Vespasiano, seu filho vai contar com o acompanhamento de um pediatra e de uma enfermeira de plantão. Vai tomar vacinas, fazer o teste do pezinho, receber fraldas e leite em pó. As mães em Vespasiano também podem se consultar com psicólogas e um dentista. As 45 agentes penitenciárias são técnicas em enfermagem que receberam treinamento para trabalhar na cadeia. Três internas tomam remédios controlados e consultam semanalmente um psiquiatra, para amenizar a agressividade e crises de abstinência.
Ana Cláudia, 21 anos, é mãe de Ana Clara, dez meses. É uma das únicas presas visivelmente abaixo do peso. Ela fala baixo, tem olheiras fundas e o olhar distante. Acusada de tráfico, foi presa em flagrante com dois quilos de cocaína em casa, 'que guardava para um amigo'. Ex-usuária, ela chora quando conta que pegou uma pena de oito anos. 'Estou muito triste. Destruída. Choro quando acordo e quando vou dormir', diz. Ela reclama da severidade de sua condenação. 'Tem outras pessoas aqui que são reincidentes que pegaram penas menores', afirma. 'Passar datas marcantes na prisão é difícil. Sinto saudade da minha família. Fico lembrando como foram os natais anteriores. Nó, é ruim demais. Mas tem horas que agradeço a Deus por ter me colocado aqui. Aprendi que a vida não é feita de sonhos. Isso aqui é um pesadelo.' Pode ser. Mas Vespasiano é uma cadeia bem menos violenta que as do restante do estado. Quase não há confrontos entre as detentas e as acomodações são melhores. Quando as brigas acontecem, as envolvidas são proibidas de assistir à televisão ou têm de ficar 'pensando no que fizeram' na mesa da diretora do presídio.
Ana Cláudia diz que começou a cheirar cocaína aos 14 anos, nas baladas. 'Era uma adolescente rebelde. Larguei a escola e fui trabalhar. Minha mãe, evangélica, nunca impôs limites. Uma vez minha avó me chamou para lavar bacias e ela disse que 'filha dela não ia lavar bacia coisa nenhuma'. Fui criada na vida mansa. Ela só tentou me educar quando eu era grande, mas aí já era tarde. Meu pai e minha mãe se separaram quando eu era bebê. Ele é viciado em crack e a sua vida acabou por causa disso. Não sabe nem quero que saiba que estou presa. Ele é violento. Quando descobriu que eu traí um ex-namorado, me chamou na casa dele e me bateu na frente do rapaz, que assistiu à surra rindo. Eu xinguei meu pai na hora, mas depois me arrependi e pedi desculpas.'
Ana Clara é filha de um ex-paquera, que duvida da paternidade. 'Ele me chama de louca, vagabunda. Quer o DNA, mas tenho certeza de que a filha é dele.' Ele visitou a bebê na cadeia uma vez. Quando Ana Clara completar um ano, Ana Cláudia terá de deixá-la aos cuidados de sua mãe - que trabalha fora como doméstica - e de sua avó. Também será transferida para outro presídio até terminar de cumprir sua pena, daqui a sete anos.
Banhos de sol As detentas podem passar o dia todo no pátio
com seus filhos. À noite, assistem à novela

'Não sei o que será da minha filha. Eu preciso dela tanto quanto ela de mim' -Adriana da Silva, detenta
O MEDO DE PERDER A GUARDA
Alguns dias antes de Marie Claire chegar em Vespasiano, uma detenta perdeu a guarda de sua filha. Uma agente penitenciária teria a flagrado estapeando a bebê, de sete meses. Companheiras de alojamento dizem que já tinham testemunhado cenas parecidas e relatado à administração do presídio. Ela deu à luz na Piep (Penitenciária Estevão Pinto), em Belo Horizonte, onde esteve presa antes. Lá, havia três ocorrências de maus-tratos por parte dela, ex-usuária de crack. A criança foi para um abrigo e a mãe, transferida de penitenciária. 'Quando foram pegar a menina, a mãe começou a gritar muito, parecia um bicho. Tiveram de segurá-la. E a menina chorava e estendia os bracinhos para ela. Mesmo a mãe sendo agressiva, elas eram muito apegadas', diz uma presa que prefere não se identificar.
Quando os bebês de Vespasiano completam um ano, as mães devem indicar familiares ou amigos capazes de cuidar deles até o fim da pena. Se os indicados não tiverem condições financeiras ou emocionais para criar a criança, os bebês irão para um abrigo público ou ficarão sob os cuidados de uma família provisória, até que a mãe possa reaver a guarda. Mas nem todas as detentas têm informações sobre seus direitos maternos. Elas acreditam que perderão a guarda dos bebês para o governo se nenhum familiar puder criar a criança. Mas, de acordo com a Vara da Infância e da Juventude de Minas Gerais, a lei determina que uma mãe só perde a guarda do filho quando maltrata, negligencia ou comete atos imorais na frente ou com a criança. 'Muitas presas acreditam que perdem a guarda das crianças quando elas vão para os abrigos. As administrações dos presídios dizem isso a elas, ou simplesmente não dão informação alguma sobre o destino das crianças. Por isso, algumas mulheres costumam dizer que não querem se apegar aos filhos porque acreditam que irão perdê-los', relata Alessandra, do IBCCRIM.
A presa Adriana Medeiros da Silva, 23 anos, mãe de Giovana, três meses, não sabe se poderá reaver a guarda da filha, quando terminar de cumprir sua pena, em três anos. Ex-usuária de crack, moradora de rua e prostituta, diz que foi presa por ter roubado um celular, mas assume que já esfaqueou um homem que tentou matá-la batendo a sua cabeça contra a parede. Diz que engravidou de um pescador baiano, durante uma fuga da prisão, com quem teve um rápido romance, e não sabe onde ele vive hoje. 'Não tenho mais contato com a minha família. Tenho quatro filhos que moram com o pai no Mato Grosso, mas não sei onde. Ele não me deixa ver as crianças. Minha mãe sabe que estou presa e não veio me visitar. Ela não vai cuidar da minha filha.' Adriana brinca com os dedos dos pés da menina que carrega no colo enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto. 'Tenho medo do que pode acontecer com ela longe de mim. Não sei se vou voltar a vê-la. Minha filha é a única pessoa que tenho no mundo, minha família. Preciso dela tanto quanto ela de mim. É só por causa dela que me arrependo de tudo que fiz.'
À espera Assim como a cabeleireira Sirley, grávida de nove
meses, a maioria cumpre pena por tráfico


Fotos Caio Guatelli


Volta
 FONTE  http://revistamarieclaire.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,1700594-1740-1,00.html

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