No mais, a política de desmilitarização deve também se estender ao sistema prisional. É imperativa “a erradicação da militarização da gestão, da vigilância interna e de serviços penais, exceto os guarda externa e escolta, nos termos das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos”, assim como devem ser rechaçadas as propostas de transformação da carreira de agentes prisionais em “polícia penitenciária”, em clara distorção à função de tutela (e não de repressão) dos quadros do sistema penitenciário.
Igualmente rechaçáveis são as propostas que autorizam o porte de arma fora de serviço aos agentes penitenciários federais e estaduais, em especial a contida no PL 6565/2013, enviada pela Presidenta da República ao Congresso Nacional, que está, como a própria Presidência afirmou em vetos anteriores, “na contramão da política nacional de combate à violência e em afronta ao Estatuto do Desarmamento”. Como bem ponderado em nota pública da Pastoral Carcerária: “É fundamental que o porte de armas de fogo fique restrito às instituições com mandato para atuar na Segurança Pública, instituições capazes de estabelecer mecanismos adequados de controle e treinamento de seus agentes. Além disso, vale esclarecer que a concessão de porte de armas aos agentes prisionais já é possível, desde que comprovada sua efetiva necessidade e atendimento dos requisitos previstos na lei (como atestado de capacidade técnica e psicológica)”.
A Pastoral Carcerária e outras entidades apresentam política prsional contra os agepens
A Pastoral Carcerária, as Mães de Maio, o Instituto Práxis e o Margens Clínicas reuniram-se com alguns ministros do governo federal, em 30 de outubro, e entregaram uma nota em que defendem a criação de um programa nacional de desencarceramento e a abertura do cárcere para a sociedade.
A nota indica que em 20 anos, a população carcerária do país aumentou em 380% e há uma constante degradação do sistema prisional, com violação dos direitos básicos da população carcerária.
O documento sinaliza, também, que “para além das medidas apresentadas na ‘Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas’ atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos”, e indica diretrizes a serem seguidas.
Abaixo segue a íntegra da nota.
Por um programa nacional de desencarceramento e de abertura do cárcere para a sociedade
Como se sabe, o Brasil ostenta o nada honroso quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária no mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia), com mais de 550 mil pessoas presas. Entre 1992 e 2012, a população carcerária brasileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil pessoas presas: recrudescimento de 380% (DEPEN). No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 30% (IBGE).
Conjuga-se gravemente com esse processo de encarceramento em massa a degradação do sistema prisional, consubstanciada na violação dos direitos mais básicos da população carcerária: apenas 10% têm acesso a alguma forma de educação; somente 20% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil, com quadro técnico exíguo e diversos casos de graves doenças e até de óbitos oriundos de negligência; as unidades são superlotadas: o Brasil ostenta a maior taxa de ocupação prisional (172%) entre os países considerados “emergentes”; torturas e maus-tratos campeiam, com a conivência dos órgãos responsáveis por fiscalizar as unidades prisionais.
Ao caráter massivo do encarceramento no Brasil soma-se o caráter seletivo do sistema penal, expresso na discriminação de bens protegidos e de pessoas alvejadas: de um lado, apesar das centenas de tipos penais constantes da legislação, cerca de 80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio (e congêneres) ou pequeno tráfico de drogas; de outro, apesar da multiplicidade étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe social e territórios daquelas que, historicamente, estão às margens do processo civilizatório brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e pretas.
A seletividade penal tem ainda outro viés, mais grave e violento: a criminalização das mulheres. Apesar de o número de mulheres presas corresponder a cerca de 8% do total da população carcerária, sabe-se que, nos últimos dez anos, houve aumento de cerca de 260% de mulheres presas contra aumento de aproximadamente 105% de homens presos.
O caráter patriarcal do sistema penal revela traços extremamente cruéis e sintomáticos do machismo elevado à máxima potência.
O recrudescimento da população prisional feminina deriva da assunção por centenas de milhares de mulheres pobres (quase sempre negras) de trabalhos precários e perigosos na cadeia de comercialização de psicotrópicos, tornando-as principal alvo da obtusa guerra às drogas, eis que mais expostas e vulneráveis.
Bom lembrar que a maioria esmagadora das mulheres presas por tráfico de drogas é composta por pequenas comerciantes ou mesmo por meras usuárias (fenômeno também observado entre os homens) e que não são raros os casos de separação violenta e ilegal dessas mulheres de seus filhos. Também não são raros os casos de mulheres que, presas durante a gravidez, ou perdem a criança por falta de cuidados médicos, ou dão à luz algemadas!
É de se mencionar, também, a penalização de mulheres familiares de pessoas presas. Nas filas de visita, a revista vexatória perdura, vergonhosamente, como prática estatal para penalizar e humilhar familiares, geralmente mulheres, que viajam longas distâncias para visitar o ente querido preso, quando não são dissuadidas pelos próprios presos de enfrentar essa prática abjeta.
O contato com a realidade do sistema penal, como se percebe, traz a clareza de que há evidente processo de criminalização patriarcal da maternidade e da ocupação do espaço público por mulheres.
A todas essas mazelas, adiciona-se ainda mais uma: a violação sistemática do direito fundamental à presunção de inocência. Ninguém ignora que, juridicamente, somente é culpada aquela pessoa que, acusada pelo cometimento de determinado crime, teve direito a um processo justo e a todas as vias recursais até que a condenação se torne definitiva. Na prática, todavia, prevalece a punição antecipada, configurada na verdadeira farra das prisões cautelares: cerca de 43% da população prisional brasileira ainda não tem condenação definitiva! Em outros termos, quase metade da população prisional brasileira é juridicamente inocente!
O quadro apresentado sintetiza um pouco dos horrores do sistema prisional brasileiro, mas é insuficiente para traduzir o que apenas o contato direto com a realidade pode ensinar: cárcere não é lugar de gente.
O Supremo Ministro, então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Excelentíssimo Sr. Cezar Peluso, já criticara em março de 2011 o sistema penitenciário do país e chegou a comparar algumas prisões às “masmorras medievais”. “Isso é um crime do Estado contra o cidadão brasileiro”, disse ele, durante seminário de segurança pública promovido pela Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). O próprio atual Ministro da Justiça assumiu publicamente isso, pouco tempo depois de assumir o posto que ainda ocupa: “Se fosse para cumprir muitos anos em uma prisão nossa, eu preferiria morrer”, disse durante um encontro com empresários paulistas, fazendo a mesma alusão ao caráter de “terríveis masmorras medievais” das prisões brasileiras.
Em face do nítido caráter seletivo, classista e racista do sistema penal, cumpre a um Governo que se quer comprometido com as camadas populares, com as pessoas mais humildes e exploradas desse país, envidar todos os esforços para reverter o processo de encarceramento em massa e pôr freios ao sistema penal. É necessário, urgentemente, fechar as comportas do sistema penal e estancar as “veias abertas” do sistema prisional brasileiro com a adoção de medidas efetivas de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos enquanto houver prisões. Nesse sentido, para além das medidas apresentadas na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas” atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos, composto pelas seguintes diretrizes:
1 – Revogação do programa nacional de apoio ao sistema prisional
O cerne do Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lançado em meados do segundo semestre de 2011, é o empenho de cerca de 1 bilhão e 100 milhões de reais para a construção de novas unidades prisionais em todo o país, com duas metas principais: “zerar o déficit de vagas feminino e reduzir o número de presos em delegacias de polícia, transferindo para cadeias públicas”. Tal Programa, no entanto, é manifestamente equivocado. Ainda que atingidas as metas do plano (construção de 42,5 mil novas vagas), sequer se supriria, por exemplo, o déficit carcerário do Estado de São Paulo, de cerca de 90 mil vagas em 2012 e que, a cada mês, tem o acréscimo, em média, de 10.000 pessoas inclusas (contra cerca de 6.000 egressas). A superlotação não deriva da ausência de políticas para a construção de presídios (nos últimos 20 anos, o Brasil saltou de 60 mil vagas para 306 mil vagas prisionais), mas sim, bom iterar, das prisões abusivas, ilegais e discriminatórias executadas contra as pessoas mais pobres desse país e do exagerado investimento em políticas repressivas em detrimento de políticas sociais. A construção de presídios não apenas é inábil ao objetivo de aplacar a superlotação carcerária, como também serve de fomento às prisões. De acordo com David Ladipo, pesquisador do sistema prisional estadunidense, “quando as prisões estão superlotadas, há maior pressão sobre os juízes para serem mais seletivos na imposição de sentenças de encarceramento. Quando a capacidade das prisões aumenta, parte dessa pressão diminui”. O Governo Federal deve imediatamente cessar qualquer política de construção de presídios para priorizar políticas que, de fato, são aptas a equacionar os principais problemas atinentes ao sistema carcerário. O “Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional” é um erro e reclama urgente revogação, sob pena de contribuir ainda mais para a expansão do sistema e da população prisionais.
2 – Pacto Republicano para construção de plano plurianual de redução da população prisional e dos Danos Causados pela Prisão
No lugar de um programa com metas para a construção de presídios, propõe-se pacto republicano entre os três poderes e entre os entes federativos para a construção de metas voltadas à redução da população prisional e de suas mazelas e à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos. No que toca à redução da população prisional e de suas mazelas, bom lembrar que o Governo Federal conta com importante expediente para impulsionar a redução da população prisional: o indulto. Trata-se de prerrogativa constitucional atribuída à Presidência da República (conforme artigo 84, XII, CR) que deve ser mais amplamente utilizada para enfrentar o encarceramento em massa, a exemplo da corajosa proposta recentemente apresentada pelo Presidente italiano para liberar 24 mil presos do também superlotado sistema prisional da Itália. É de extrema importância, ademais, a inclusão do sistema prisional entre as prioridades nas políticas de ampliação de oferta de vagas de ensino e de aumento do número de médicos em locais carentes, considerando, inclusive, a chegada de profissionais estrangeiros, no âmbito das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Programa “Mais Médicos”.
Com relação à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos, sugere-se que a construção das metas seja guiada pelos seguintes pontos elencados pela Pastoral Carcerária:
1) levantamento prévio e detalhado da situação, das necessidades e das dificuldades encontradas pelos egressos, bem como consultas democráticas e construção participativa de políticas voltadas para essa população; 2) implementação de trabalho de conscientização territorial e comunitário a fim de superar os efeitos danosos causados pelo encarceramento; 3) integração dos diversos componentes territoriais em rede; 4) programa integral de atenção aos egressos individualizado, respeitando os distintos grupos sociais e com políticas voltadas para as minorias; 5) respeitar as especificidades do atendimento das mulheres egressas; 6) garantia de célere atendimento à pessoa egressa, de preferência já no limiar de sua saída; 7) formação adequada das polícias e outros agentes de segurança pública para que saibam como trabalhar com esta população; e 8) produção permanente de dados e acompanhamento das políticas implementadas.
Ainda no âmbito da política para pessoas egressas, vale replicar importante apontamento do documento da Pastoral Carcerária: “Trata-se de uma questão da qual o Plano Juventude Viva, que busca reduzir os índices de vulnerabilidade e, consequentemente, de mortalidade da população jovem e negra nas cidades brasileiras não pode se furtar, já que a passagem pelo sistema prisional aumenta a vulnerabilidade da pessoa e retira, ainda mais, sua dignidade e sua cidadania.” O Plano Plurianual de Redução da População Prisional e dos Danos Causados Pela Prisão aqui proposto poderia ser pactuado e reajustado anualmente, observados o permanente acompanhamento das políticas de atendimento às pessoas egressas e a realização de visitas conjuntas a todas unidades prisionais do país, com a garantia ampla participação da sociedade civil, a fim de detectar o cumprimento de suas diretrizes, de promover a liberação de pessoas presas ilegalmente e de identificar, apurar e sanar eventuais violações de direitos.
3 – Alterações legislativas para a máxima Limitação da aplicação de prisões cautelares
Como já afirmado, apesar de vigorar no Brasil o princípio constitucional da presunção de inocência, cerca de 43% da população prisional ainda não tem condenação definitiva. Os mutirões empolgados pelo CNJ têm demonstrado, reiteradamente, o excessivo número de prisões ilegais e abusivas. Nesse contexto, é fundamental que o Governo se empenhe em articular, junto à sua base aliada no Congresso Nacional, alterações legislativas que abarque, no mínimo: a) a exclusão das hipóteses de decretação de prisão preventiva “como garantia da ordem pública ou da ordem econômica”, “em face da extrema gravidade do fato” e “diante da prática reiterada de crimes pelo mesmo autor” (as duas últimas hipóteses são retrocessos inclusos no PLS 156/2009); b) a ampliação dos casos em que a decretação da prisão preventiva é vedada; c) a redução do prazo máximo da prisão preventiva prevista no anteprojeto de Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional – PLS 156/2009 (de acordo com o qual a prisão preventiva poderá perdurar por até 720 dias).
4 – Contra a criminalização do Uso e Comércio de Drogas
No âmbito da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, alega-se, na defesa do programa “Crack é Possível Vencer”: Embora a violência urbana não seja resultante exclusivamente do uso abusivo de drogas e de seu comércio, ela esta intimamente relacionada com esta agenda. A asserção é parcialmente verdadeira. A violência urbana, na verdade, não está intimamente ligada com o uso e o comércio de drogas, mas, mais precisamente, com a criminalização do uso e do comércio de drogas. De acordo com Maria Lúcia Karam, a criminalização do comércio de drogas, longe de inibi-lo, carreia à sociedade o “subproduto” da violência: seja para enfrentar a repressão, seja para resolver conflitos de concorrência, os comerciantes de drogas têm na violência o meio necessário para garantir seus negócios. De outra perspectiva, a política de “guerra às drogas” traz impactos imensos ao sistema carcerário e é determinante na construção de carreiras criminais entre jovens pobres das periferias. O número de pessoas presas por tráfico mais do que triplicou entre 2005 e 2011, passando de 31.520 para 115.287. O modelo atual (cujo marco legal é a Lei 11.343/2006), além de não atingir o objetivo de evitar a utilização de entorpecentes, agrava o problema, eis que as pessoas presas sob acusação de tráfico são, em regra, aquelas que estão na base da hierarquia do comércio de entorpecentes: pessoas pobres (geralmente primárias), residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio vício. Conforme já apontado, a política de combate às drogas é ainda mais cruel quando se trata das mulheres: mais do que a metade da população prisional feminina é composta de mulheres acusadas por crime de tráfico de drogas. Já passa do tempo de romper com a deletéria guerra estadunidense contra as drogas (e, por via oblíqua, contra os periféricos) e elevar o enfrentamento aos efeitos nocivos do uso de entorpecentes ao patamar de política de saúde e de educação públicas.
5 – Contração Máxima do Sistema Penal e Abertura para a Justiça Horizontal
Para Luigi Ferrajoli, Direito Penal mínimo é aquele “condicionado e limitado ao máximo” e que “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza”. Adotar o parâmetro do Direito Penal mínimo denota, portanto, o estabelecimento de caminhos os mais estreitos para o sistema penal, de tal modo que ele não transborde as limitações constitucionais e legais cuja aplicação poderia lhe emprestar alguma legitimidade. Nesse sentido, em vista da existência de dois anteprojetos de Código Penal em debate nas duas Casas Legislativas e da necessidade de restringir a pena de prisão ao menor número de casos possível, pleiteia-se empenho do Governo para a abolição da pena de prisão: nos crimes de menor potencial ofensivo; nos crimes punidos com detenção; nos crimes de ação penal de iniciativa privada; nos crimes de perigo abstrato; e nos os crimes desprovidos de violência ou grave ameaça. Faz-se necessária, ademais, mudança na regra geral estampada no artigo 100, § 1º, do Código Penal, pela qual, salvo disposição contrária (e são raras as disposições contrárias), a ação penal é pública e incondicionada. No tópico relativo à “Justiça Comunitária” da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, firma-se o objetivo de “estimular comunidades a construir seus próprios caminhos para a realização da Justiça, de forma pacífica e solidária”. No entanto, enquanto viger a regra geral do artigo 100, § 1º, do Código Penal, a vítima e sua comunidade, no mais das vezes, terão sempre papéis irrelevantes na condução do processo institucional de responsabilização. Quando muito, servirão de prova testemunhal, cujas vontades e necessidades são desprezíveis no âmbito do processo penal. Com o fim de minimamente descongestionar os espaços amplamente ocupados pelo sistema penal vigente, convém alterar a redação do artigo 100, § 1º, do Código Penal para inverter a regra geral: a ação penal passa a ser pública condicionada, salvo disposição contrária. De modo que a pessoa lesada, sempre que se sentir contemplada por outros meios de construção de justiça, poderá abdicar da intervenção penal. Raciocínio homólogo vale para o sistema penal juvenil. Apesar de já contar com dispositivo que tem aberto relativo espaço para a aplicação de práticas restaurativas (artigo 126 do ECA e artigo 35 do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), o procedimento depende da discricionariedade do Ministério Público e nada tem de horizontal ou comunitário, vez que ainda institucionalizado e, portanto, submetido ao peso e à verticalidade da jurisdição. Melhor seria que os processos para a apuração de ato infracional dependessem, igualmente, de expressa manifestação da pessoa lesada. Assim, facultada à pessoa lesada a decisão por representar ou não para a promoção da ação penal ou infracional, possibilita-se a abertura de canais comunitários de resolução consensual e não punitiva do conflito. Obviamente, caso seja promovida a representação, a pessoa acusada, ora perante o poder-dever de punir do Estado, deverá ser provida de todas as garantias fundamentais do devido processo legal. Ainda no campo de possíveis alterações do Código Penal, é de se reforçar o repúdio às atuais tentativas de tipificar o crime de terrorismo, tendencialmente entornadas à criminalização dos movimentos sociais. Nesse sentido, reforçamos integralmente o teor do Manifesto de repúdio às propostas de tipificação do crime de Terrorismo, assinado por mais do que 130 organizações e movimentos sociais.
6 – Ampliação das Garantias na LEP A Lei de Execução Penal, por sua vez, também reclama reforma, especialmente para conformá-la à Constituição da República.
Nesse sentido, alguns aspectos deveriam ser considerados: judicialização de todos os procedimentos relativos ao cumprimento de pena; regulamentação da revista de visitas, com vedação expressa às chamadas “revistas vexatórias”; ampliação das hipóteses de aplicação de prisão domiciliar, tornando-a instrumento de combate ao desrespeito aos direitos das pessoas presas; revogação do regime disciplinar diferenciado; redução dos lapsos temporais; exclusão do (arbitrário) requisito subjetivo (“bom comportamento carcerário”) para a progressão de regime e para a concessão do livramento condicional; fortalecimento do poder judicial de interdição de unidades prisionais; e detalhamento da atribuição judicial (artigo 66, VII) para a apuração de tortura, maus-tratos e outras graves violações a direitos fundamentais da pessoa presa. Necessário, ademais, seja promovida alteração na LEP para garantir os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, conforme previsão do Eixo I, item 11, do “Acordo de Cooperação para Melhoria do Sistema prisional”. O PL 7977/2010, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, é importantíssimo, mas, a nosso ver, reclama alguns reparos, nos termos das sugestões enviadas alhures e que ora reapresentamos.
7–Ainda no âmbito da LEP: Abertura do cárcere e criação de mecanismos de controle popular
Atualmente, o acesso ao cárcere é quase que circunscrito às atividades de assistência religiosa e, de maneira completamente precária e instável, a atividades acadêmicas e humanitárias, sempre dependentes da autorização do Poder Executivo. No artigo 4º da Lei de Execução Penal, dispõe-se: “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”. Interpretada a partir dos fundamentos constitucionais e dos objetivos fundamentais inscritos nos artigos 1º e 3º da Constituição da República, a expressão “cooperação da comunidade” deve ser compreendida como abertura ao envolvimento da comunidade na equação dos danos produzidos pelo conflito e pela pena, com a possibilidade de restabelecer os laços da pessoa presa com a sua comunidade no decorrer do cumprimento da pena de prisão. Há dois outros dispositivos contidos na LEP que também poderiam ser aplicados a fim de promover a abertura do cárcere para a sociedade: 1) no artigo 23, VII, a atribuição de “orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima”, conferida ao serviço de assistência social, fornece fundamentos suficientes para as equipes de serviço social se empenharem na construção de espaços de encontro da pessoa presa com a pessoa ofendida; 2) no artigo 64, I ,abre-se a possibilidade de o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) estabelecer marco normativo que regulamente e amplie o acesso ao cárcere pela sociedade. No entanto, é fundamental encampar reformas na LEP conducentes à abertura crescente do cárcere à sociedade, com a inclusão da assistência humanitária no rol do artigo 11 e a regulamentação de visitas ao cárcere pela sociedade. Outra importante medida a ser adotada nacionalmente é a obrigatoriedade da criação de Ouvidorias Externas e Independentes, capitaneadas por membros externos à carreira pública escolhidos no âmbito da Sociedade Civil. Apesar de convencionada na Meta 3 do Plano Diretor do Sistema Penitenciário (2008), são poucos os Estados que implementaram Ouvidorias Externas e Independentes do Sistema Prisional.
8 – Vedação à privatização do sistema prisional
É intolerável, absolutamente intolerável, qualquer espécie de delegação da gestão prisional à iniciativa privada. Em primeiro lugar, porque é inconstitucional: de um lado, é indelegável a função punitiva do Estado, eis que atada ao monopólio da força estruturante da República e parte, portanto, dela. Como bem assinala José Luiz Quadros de Magalhães: “para privatizar o Estado e suas funções essenciais privatizando, por exemplo, a execução penal, teríamos que fazer uma nova Constituição”. Por outro lado, punição não é atividade econômica e nem seria admissível que o fosse. A mercantilização da liberdade de pessoas fulmina, no limite, o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Para além da inconstitucionalidade e da patente imoralidade expressa nas tentativas de transformar prisões em negócios, fato é que, também do ponto de vista administrativo, a privatização é uma péssima opção, salvo para iniciativa privada, ávida por auferir altos dividendos com a pena alheia. Ora, parece de todo óbvio que a iniciativa privada não explorará o sistema prisional (ou qualquer outro “ramo” que o Estado permita explorar) sem que lhe seja permitida a extração de taxa de lucro, o que, ao que tudo indica, fará recrudescer os custos com o aprisionamento. No mesmo sentido, é pedagógico o alerta de Antônio Carlos Prado, Editor Executivo da Revista Isto É, em recentíssimo artigo publicado na própria revista: O que pode então parecer, à primeira vista, uma solução para o caótico sistema penitenciário brasileiro guarda armadilhas. Estudos feitos no Brasil apontam que, com a privatização, cada preso custará mensalmente em média R$ 4 mil – quantia que os governos terão de repassar às empresas. Nem no Principado de Mônaco, onde se oferece champanhe no café da manhã (não é ironia, é isso mesmo), um presidiário custa tanto. Será que o prisioneiro, aqui, já não está sendo superfaturado? Se essa é a quantia necessária para mantê-lo, então como explicar que o governo paulista tenha despendido apenas R$ 41 per capita ao longo do último ano? Por que os gestores dos cofres públicos, tão econômicos na questão prisional, tornam-se generosos quando entra em cena a iniciativa privada? É patente que, a despeito dos auspiciosos argumentos relativos às supostas “melhores técnicas de gestão da iniciativa privada”, há um único interesse em jogo aos que defendem a privatização (‘PPPs’ inclusas, sublinhe-se): o lucro de investidores privados. Basta divisar os exemplos de outros países para não claudicar com relação à incontornável inaptidão da iniciativa privada para tornar o sistema prisional algo menos indecente do que ele é. Tanto nos EUA quanto na Inglaterra (conforme se evidencia na tese de doutorado de Laurindo Minhoto), os indicadores apontam para a manutenção, nas unidades privadas, das mazelas que se prometia combater: fugas constantes, mortes ocasionadas por negligência, denúncias de torturas e maus-tratos, rebeliões, entre outras mazelas, foram e são registradas frequentemente nos presídios privados estadunidenses e ingleses. As pontuais experiências de privatização no Brasil não são diferentes. Exemplo mais conhecido vem do Estado do Paraná, cujo antigo Governador, hoje Senador da República, Roberto Requião, delineia e critica categoricamente. Em sessão no Senado, ao rechaçar projeto de lei de privatização dos presídios, o Senador afirmou que, quando assumiu o Governo do Paraná, em 2003, encontrou uma série de presídios privatizados. Segundo ele: eram “presídios sui generis, que exigiam quase um vestibular para admitir o preso. Era uma espécie de Circuito Elizabeth Arden para presos extremamente prestigiados pela estrutura. Só entravam lá condenados que pudessem frequentar a lista de candidatos ao céu, ao panteão dos santos, e a remuneração que esses presos recebiam era uma lição exemplar da ideia da mais-valia. É claro, o modelo não deu certo, e o Estado, na minha administração, retomou esses presídios”. Vale ainda mencionar o insuspeito Paul Krugman, prêmio Nobel de economia e liberal nato, que, em artigo escrito na Folha de São Paulo, motivado por uma série de matérias publicadas no New York Times sobre o sistema prisional privatizado de New Jersey, afirma: “Os operadores privados de penitenciárias só conseguem economizar dinheiro por meio de reduções em quadros de funcionários e nos benefícios aos trabalhadores. As penitenciárias privadas economizam dinheiro porque empregam menos guardas e pagam menos a eles. E em seguida lemos histórias de horror sobre o que acontece nas prisões.” Tem-se, portanto, por inescapável a conclusão pela completa falta de razoabilidade (e de constitucionalidade e moralidade também) em qualquer intento de privatizar o sistema prisional, o que, longe de trazer soluções reais para o povo aprisionado e seus familiares, traria, na realidade, um asqueroso assédio ao Poder Legislativo em busca de mais penas, mais prisões e, portanto, mais lucros. A bem do real interesse público, qualquer investimento em prisões deve repelir a iniciativa privada, vinculando a liberação de verbas federais exclusivamente à implementação de melhorias em unidades prisionais completamente estatais já existentes.
9 – Prevenção e Combate à Tortura Fruto da articulação da sociedade civil organizada, a Lei 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ainda carece de implementação.
Em face da ocorrência de torturas sistemáticas no sistema prisional, constatadas em diversos relatórios (vide, por exemplo: CPI do Sistema Carcerário/2008, Pastoral Carcerária/2010, Mutirão Carcerário do CNJ/2012, entre outros), é urgente a implementação e o aparelhamento do Mecanismo de Prevenção à Tortura, garantindo plenas independência e autonomia, com membros escolhidos entre e pela sociedade civil, sem ingerência do Poder Público. Para além do Mecanismo de Prevenção à Tortura, cumpre estabelecer, como já anotado supra, marco normativo para a especificação da atuação dos órgãos da Execução Penal (em especial, o Juízo da Execução) na atribuição de apurar torturas, maus-tratos e outras violações a direitos fundamentais. Ademais, no desiderato de combater incansavelmente a tortura, prática execrável que remonta aos primórdios da invasão portuguesa ao Brasil, é elementar que se envide esforços para a célere aprovação do Projeto de Lei 554/2011, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, que prevê a realização da chamada “audiência de custódia”. A aprovação de referido projeto adequará a legislação brasileira ao Pacto de São José de Costa Rica, com a imposição da apresentação da pessoa presa ao Juízo competente em 24 horas. Cuida-se de inovação apta não apenas a possibilitar o rápido acesso à Justiça, mas, sobretudo, a coibir a prática de tortura.
10 – Desmilitarização das Polícias e do Sistema Prisional
Por derradeiro, urge promover a desmilitarização definitiva das polícias e da gestão prisional. A lógica militar é norteada pela política de guerra, na qual os pobres, quase sempre pretos, quase sempre periféricos, são eleitos como inimigos e se transformam em alvos exclusivos das miras e das algemas policiais. Entulho deixado pela ditadura civil-militar que ainda permeia nosso cotidiano, o militarismo das polícias brasileiras é fator determinante para a alta taxa de letalidade da nossa polícia e, igualmente, para o processo de encarceramento em massa, a tal ponto que a própria ONU já recomendou ao Brasil que desmilitarize suas polícias. Sobre a necessidade de promover a desmilitarização das polícias, Túlio Viana afirma: “O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”. Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios”. A desconstrução do modelo de guerra intrínseco ao militarismo, que – com exceção da previsão de polícias municipais – parece estar bem delineada na PEC 53/2013 (de autoria do Senador Lindbergh Farias), é fundamental para a construção de política abrangente de redução do Estado Penal, na medida em que tal modelo expressa elemento violento e autoritário de alta incidência nas comunidades mais vulneráveis.
No mais, a política de desmilitarização deve também se estender ao sistema prisional. É imperativa “a erradicação da militarização da gestão, da vigilância interna e de serviços penais, exceto os guarda externa e escolta, nos termos das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos”, assim como devem ser rechaçadas as propostas de transformação da carreira de agentes prisionais em “polícia penitenciária”, em clara distorção à função de tutela (e não de repressão) dos quadros do sistema penitenciário.
Igualmente rechaçáveis são as propostas que autorizam o porte de arma fora de serviço aos agentes penitenciários federais e estaduais, em especial a contida no PL 6565/2013, enviada pela Presidenta da República ao Congresso Nacional, que está, como a própria Presidência afirmou em vetos anteriores, “na contramão da política nacional de combate à violência e em afronta ao Estatuto do Desarmamento”. Como bem ponderado em nota pública da Pastoral Carcerária: “É fundamental que o porte de armas de fogo fique restrito às instituições com mandato para atuar na Segurança Pública, instituições capazes de estabelecer mecanismos adequados de controle e treinamento de seus agentes. Além disso, vale esclarecer que a concessão de porte de armas aos agentes prisionais já é possível, desde que comprovada sua efetiva necessidade e atendimento dos requisitos previstos na lei (como atestado de capacidade técnica e psicológica)”.
A Reversão do Encarceramento em Massa como Eixo Condutor da Presente Proposta O principal eixo e, ao mesmo tempo, objeto do Programa ora proposto é, indubitavelmente, a reversão do encarceramento em massa e, portanto, a redução gradativa e substancial da população prisional do país. Todas as demais medidas não são exaustivas e compõem política ampla que tem, ao fim e ao cabo, apenas dois objetivos: reduzir a população prisional e garantir às pessoas presas e a seus familiares o mínimo de dignidade e de sociabilidade, apesar do cárcere.
Por uma vida sem grades; por grades menos Desumanas
Por um mundo sem grades, por grades menos desumanas, afirmamos, de forma contundente, em coro às companheiras e companheiros presentes no I Encontro Nacional dos Conselhos da Comunidade: NENHUMA VAGA A MAIS! Espera-se que, a partir da proposta ora apresentada, construa-se política sólida, sem remendos, que seja apta a atacar na integralidade a grande chaga que representa o sistema penal às massas de marginalizados e periféricos desse país. Em respeito à memória dos ao menos 111 que tombaram pelas mãos do Estado no denominado Massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, e de tantas centenas de outras pessoas presas mortas pelos massacres cotidianos do cárcere, somos irredutíveis na exigência de uma política integral de reversão do encarceramento em massa e da degradação carcerária.
Assinam:
MÃES DE MAIO
PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL
CNBB
INSTITUTO PRÁXIS DE DIREITOS HUMANAS MARGENS CLÍNICAS
Fonte: http://carceraria.org.br/pastoral-carceraria-e-entidades-apresentam-agenda-para-a-politica-prisional.html#sthash.lIkDgQhj.dpuf
A Pastoral Carcerária, as Mães de Maio, o Instituto Práxis e o Margens Clínicas reuniram-se com alguns ministros do governo federal, em 30 de outubro, e entregaram uma nota em que defendem a criação de um programa nacional de desencarceramento e a abertura do cárcere para a sociedade.
A nota indica que em 20 anos, a população carcerária do país aumentou em 380% e há uma constante degradação do sistema prisional, com violação dos direitos básicos da população carcerária.
O documento sinaliza, também, que “para além das medidas apresentadas na ‘Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas’ atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos”, e indica diretrizes a serem seguidas.
Abaixo segue a íntegra da nota.
Por um programa nacional de desencarceramento e de abertura do cárcere para a sociedade
Como se sabe, o Brasil ostenta o nada honroso quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária no mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia), com mais de 550 mil pessoas presas. Entre 1992 e 2012, a população carcerária brasileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil pessoas presas: recrudescimento de 380% (DEPEN). No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 30% (IBGE).
Conjuga-se gravemente com esse processo de encarceramento em massa a degradação do sistema prisional, consubstanciada na violação dos direitos mais básicos da população carcerária: apenas 10% têm acesso a alguma forma de educação; somente 20% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil, com quadro técnico exíguo e diversos casos de graves doenças e até de óbitos oriundos de negligência; as unidades são superlotadas: o Brasil ostenta a maior taxa de ocupação prisional (172%) entre os países considerados “emergentes”; torturas e maus-tratos campeiam, com a conivência dos órgãos responsáveis por fiscalizar as unidades prisionais.
Ao caráter massivo do encarceramento no Brasil soma-se o caráter seletivo do sistema penal, expresso na discriminação de bens protegidos e de pessoas alvejadas: de um lado, apesar das centenas de tipos penais constantes da legislação, cerca de 80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio (e congêneres) ou pequeno tráfico de drogas; de outro, apesar da multiplicidade étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe social e territórios daquelas que, historicamente, estão às margens do processo civilizatório brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e pretas.
A seletividade penal tem ainda outro viés, mais grave e violento: a criminalização das mulheres. Apesar de o número de mulheres presas corresponder a cerca de 8% do total da população carcerária, sabe-se que, nos últimos dez anos, houve aumento de cerca de 260% de mulheres presas contra aumento de aproximadamente 105% de homens presos.
O caráter patriarcal do sistema penal revela traços extremamente cruéis e sintomáticos do machismo elevado à máxima potência.
O recrudescimento da população prisional feminina deriva da assunção por centenas de milhares de mulheres pobres (quase sempre negras) de trabalhos precários e perigosos na cadeia de comercialização de psicotrópicos, tornando-as principal alvo da obtusa guerra às drogas, eis que mais expostas e vulneráveis.
Bom lembrar que a maioria esmagadora das mulheres presas por tráfico de drogas é composta por pequenas comerciantes ou mesmo por meras usuárias (fenômeno também observado entre os homens) e que não são raros os casos de separação violenta e ilegal dessas mulheres de seus filhos. Também não são raros os casos de mulheres que, presas durante a gravidez, ou perdem a criança por falta de cuidados médicos, ou dão à luz algemadas!
É de se mencionar, também, a penalização de mulheres familiares de pessoas presas. Nas filas de visita, a revista vexatória perdura, vergonhosamente, como prática estatal para penalizar e humilhar familiares, geralmente mulheres, que viajam longas distâncias para visitar o ente querido preso, quando não são dissuadidas pelos próprios presos de enfrentar essa prática abjeta.
O contato com a realidade do sistema penal, como se percebe, traz a clareza de que há evidente processo de criminalização patriarcal da maternidade e da ocupação do espaço público por mulheres.
A todas essas mazelas, adiciona-se ainda mais uma: a violação sistemática do direito fundamental à presunção de inocência. Ninguém ignora que, juridicamente, somente é culpada aquela pessoa que, acusada pelo cometimento de determinado crime, teve direito a um processo justo e a todas as vias recursais até que a condenação se torne definitiva. Na prática, todavia, prevalece a punição antecipada, configurada na verdadeira farra das prisões cautelares: cerca de 43% da população prisional brasileira ainda não tem condenação definitiva! Em outros termos, quase metade da população prisional brasileira é juridicamente inocente!
O quadro apresentado sintetiza um pouco dos horrores do sistema prisional brasileiro, mas é insuficiente para traduzir o que apenas o contato direto com a realidade pode ensinar: cárcere não é lugar de gente.
O Supremo Ministro, então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Excelentíssimo Sr. Cezar Peluso, já criticara em março de 2011 o sistema penitenciário do país e chegou a comparar algumas prisões às “masmorras medievais”. “Isso é um crime do Estado contra o cidadão brasileiro”, disse ele, durante seminário de segurança pública promovido pela Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). O próprio atual Ministro da Justiça assumiu publicamente isso, pouco tempo depois de assumir o posto que ainda ocupa: “Se fosse para cumprir muitos anos em uma prisão nossa, eu preferiria morrer”, disse durante um encontro com empresários paulistas, fazendo a mesma alusão ao caráter de “terríveis masmorras medievais” das prisões brasileiras.
Em face do nítido caráter seletivo, classista e racista do sistema penal, cumpre a um Governo que se quer comprometido com as camadas populares, com as pessoas mais humildes e exploradas desse país, envidar todos os esforços para reverter o processo de encarceramento em massa e pôr freios ao sistema penal. É necessário, urgentemente, fechar as comportas do sistema penal e estancar as “veias abertas” do sistema prisional brasileiro com a adoção de medidas efetivas de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos enquanto houver prisões. Nesse sentido, para além das medidas apresentadas na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas” atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos, composto pelas seguintes diretrizes:
1 – Revogação do programa nacional de apoio ao sistema prisional
O cerne do Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lançado em meados do segundo semestre de 2011, é o empenho de cerca de 1 bilhão e 100 milhões de reais para a construção de novas unidades prisionais em todo o país, com duas metas principais: “zerar o déficit de vagas feminino e reduzir o número de presos em delegacias de polícia, transferindo para cadeias públicas”. Tal Programa, no entanto, é manifestamente equivocado. Ainda que atingidas as metas do plano (construção de 42,5 mil novas vagas), sequer se supriria, por exemplo, o déficit carcerário do Estado de São Paulo, de cerca de 90 mil vagas em 2012 e que, a cada mês, tem o acréscimo, em média, de 10.000 pessoas inclusas (contra cerca de 6.000 egressas). A superlotação não deriva da ausência de políticas para a construção de presídios (nos últimos 20 anos, o Brasil saltou de 60 mil vagas para 306 mil vagas prisionais), mas sim, bom iterar, das prisões abusivas, ilegais e discriminatórias executadas contra as pessoas mais pobres desse país e do exagerado investimento em políticas repressivas em detrimento de políticas sociais. A construção de presídios não apenas é inábil ao objetivo de aplacar a superlotação carcerária, como também serve de fomento às prisões. De acordo com David Ladipo, pesquisador do sistema prisional estadunidense, “quando as prisões estão superlotadas, há maior pressão sobre os juízes para serem mais seletivos na imposição de sentenças de encarceramento. Quando a capacidade das prisões aumenta, parte dessa pressão diminui”. O Governo Federal deve imediatamente cessar qualquer política de construção de presídios para priorizar políticas que, de fato, são aptas a equacionar os principais problemas atinentes ao sistema carcerário. O “Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional” é um erro e reclama urgente revogação, sob pena de contribuir ainda mais para a expansão do sistema e da população prisionais.
2 – Pacto Republicano para construção de plano plurianual de redução da população prisional e dos Danos Causados pela Prisão
No lugar de um programa com metas para a construção de presídios, propõe-se pacto republicano entre os três poderes e entre os entes federativos para a construção de metas voltadas à redução da população prisional e de suas mazelas e à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos. No que toca à redução da população prisional e de suas mazelas, bom lembrar que o Governo Federal conta com importante expediente para impulsionar a redução da população prisional: o indulto. Trata-se de prerrogativa constitucional atribuída à Presidência da República (conforme artigo 84, XII, CR) que deve ser mais amplamente utilizada para enfrentar o encarceramento em massa, a exemplo da corajosa proposta recentemente apresentada pelo Presidente italiano para liberar 24 mil presos do também superlotado sistema prisional da Itália. É de extrema importância, ademais, a inclusão do sistema prisional entre as prioridades nas políticas de ampliação de oferta de vagas de ensino e de aumento do número de médicos em locais carentes, considerando, inclusive, a chegada de profissionais estrangeiros, no âmbito das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Programa “Mais Médicos”.
Com relação à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos, sugere-se que a construção das metas seja guiada pelos seguintes pontos elencados pela Pastoral Carcerária:
1) levantamento prévio e detalhado da situação, das necessidades e das dificuldades encontradas pelos egressos, bem como consultas democráticas e construção participativa de políticas voltadas para essa população; 2) implementação de trabalho de conscientização territorial e comunitário a fim de superar os efeitos danosos causados pelo encarceramento; 3) integração dos diversos componentes territoriais em rede; 4) programa integral de atenção aos egressos individualizado, respeitando os distintos grupos sociais e com políticas voltadas para as minorias; 5) respeitar as especificidades do atendimento das mulheres egressas; 6) garantia de célere atendimento à pessoa egressa, de preferência já no limiar de sua saída; 7) formação adequada das polícias e outros agentes de segurança pública para que saibam como trabalhar com esta população; e 8) produção permanente de dados e acompanhamento das políticas implementadas.
Ainda no âmbito da política para pessoas egressas, vale replicar importante apontamento do documento da Pastoral Carcerária: “Trata-se de uma questão da qual o Plano Juventude Viva, que busca reduzir os índices de vulnerabilidade e, consequentemente, de mortalidade da população jovem e negra nas cidades brasileiras não pode se furtar, já que a passagem pelo sistema prisional aumenta a vulnerabilidade da pessoa e retira, ainda mais, sua dignidade e sua cidadania.” O Plano Plurianual de Redução da População Prisional e dos Danos Causados Pela Prisão aqui proposto poderia ser pactuado e reajustado anualmente, observados o permanente acompanhamento das políticas de atendimento às pessoas egressas e a realização de visitas conjuntas a todas unidades prisionais do país, com a garantia ampla participação da sociedade civil, a fim de detectar o cumprimento de suas diretrizes, de promover a liberação de pessoas presas ilegalmente e de identificar, apurar e sanar eventuais violações de direitos.
3 – Alterações legislativas para a máxima Limitação da aplicação de prisões cautelares
Como já afirmado, apesar de vigorar no Brasil o princípio constitucional da presunção de inocência, cerca de 43% da população prisional ainda não tem condenação definitiva. Os mutirões empolgados pelo CNJ têm demonstrado, reiteradamente, o excessivo número de prisões ilegais e abusivas. Nesse contexto, é fundamental que o Governo se empenhe em articular, junto à sua base aliada no Congresso Nacional, alterações legislativas que abarque, no mínimo: a) a exclusão das hipóteses de decretação de prisão preventiva “como garantia da ordem pública ou da ordem econômica”, “em face da extrema gravidade do fato” e “diante da prática reiterada de crimes pelo mesmo autor” (as duas últimas hipóteses são retrocessos inclusos no PLS 156/2009); b) a ampliação dos casos em que a decretação da prisão preventiva é vedada; c) a redução do prazo máximo da prisão preventiva prevista no anteprojeto de Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional – PLS 156/2009 (de acordo com o qual a prisão preventiva poderá perdurar por até 720 dias).
4 – Contra a criminalização do Uso e Comércio de Drogas
No âmbito da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, alega-se, na defesa do programa “Crack é Possível Vencer”: Embora a violência urbana não seja resultante exclusivamente do uso abusivo de drogas e de seu comércio, ela esta intimamente relacionada com esta agenda. A asserção é parcialmente verdadeira. A violência urbana, na verdade, não está intimamente ligada com o uso e o comércio de drogas, mas, mais precisamente, com a criminalização do uso e do comércio de drogas. De acordo com Maria Lúcia Karam, a criminalização do comércio de drogas, longe de inibi-lo, carreia à sociedade o “subproduto” da violência: seja para enfrentar a repressão, seja para resolver conflitos de concorrência, os comerciantes de drogas têm na violência o meio necessário para garantir seus negócios. De outra perspectiva, a política de “guerra às drogas” traz impactos imensos ao sistema carcerário e é determinante na construção de carreiras criminais entre jovens pobres das periferias. O número de pessoas presas por tráfico mais do que triplicou entre 2005 e 2011, passando de 31.520 para 115.287. O modelo atual (cujo marco legal é a Lei 11.343/2006), além de não atingir o objetivo de evitar a utilização de entorpecentes, agrava o problema, eis que as pessoas presas sob acusação de tráfico são, em regra, aquelas que estão na base da hierarquia do comércio de entorpecentes: pessoas pobres (geralmente primárias), residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio vício. Conforme já apontado, a política de combate às drogas é ainda mais cruel quando se trata das mulheres: mais do que a metade da população prisional feminina é composta de mulheres acusadas por crime de tráfico de drogas. Já passa do tempo de romper com a deletéria guerra estadunidense contra as drogas (e, por via oblíqua, contra os periféricos) e elevar o enfrentamento aos efeitos nocivos do uso de entorpecentes ao patamar de política de saúde e de educação públicas.
5 – Contração Máxima do Sistema Penal e Abertura para a Justiça Horizontal
Para Luigi Ferrajoli, Direito Penal mínimo é aquele “condicionado e limitado ao máximo” e que “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza”. Adotar o parâmetro do Direito Penal mínimo denota, portanto, o estabelecimento de caminhos os mais estreitos para o sistema penal, de tal modo que ele não transborde as limitações constitucionais e legais cuja aplicação poderia lhe emprestar alguma legitimidade. Nesse sentido, em vista da existência de dois anteprojetos de Código Penal em debate nas duas Casas Legislativas e da necessidade de restringir a pena de prisão ao menor número de casos possível, pleiteia-se empenho do Governo para a abolição da pena de prisão: nos crimes de menor potencial ofensivo; nos crimes punidos com detenção; nos crimes de ação penal de iniciativa privada; nos crimes de perigo abstrato; e nos os crimes desprovidos de violência ou grave ameaça. Faz-se necessária, ademais, mudança na regra geral estampada no artigo 100, § 1º, do Código Penal, pela qual, salvo disposição contrária (e são raras as disposições contrárias), a ação penal é pública e incondicionada. No tópico relativo à “Justiça Comunitária” da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, firma-se o objetivo de “estimular comunidades a construir seus próprios caminhos para a realização da Justiça, de forma pacífica e solidária”. No entanto, enquanto viger a regra geral do artigo 100, § 1º, do Código Penal, a vítima e sua comunidade, no mais das vezes, terão sempre papéis irrelevantes na condução do processo institucional de responsabilização. Quando muito, servirão de prova testemunhal, cujas vontades e necessidades são desprezíveis no âmbito do processo penal. Com o fim de minimamente descongestionar os espaços amplamente ocupados pelo sistema penal vigente, convém alterar a redação do artigo 100, § 1º, do Código Penal para inverter a regra geral: a ação penal passa a ser pública condicionada, salvo disposição contrária. De modo que a pessoa lesada, sempre que se sentir contemplada por outros meios de construção de justiça, poderá abdicar da intervenção penal. Raciocínio homólogo vale para o sistema penal juvenil. Apesar de já contar com dispositivo que tem aberto relativo espaço para a aplicação de práticas restaurativas (artigo 126 do ECA e artigo 35 do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), o procedimento depende da discricionariedade do Ministério Público e nada tem de horizontal ou comunitário, vez que ainda institucionalizado e, portanto, submetido ao peso e à verticalidade da jurisdição. Melhor seria que os processos para a apuração de ato infracional dependessem, igualmente, de expressa manifestação da pessoa lesada. Assim, facultada à pessoa lesada a decisão por representar ou não para a promoção da ação penal ou infracional, possibilita-se a abertura de canais comunitários de resolução consensual e não punitiva do conflito. Obviamente, caso seja promovida a representação, a pessoa acusada, ora perante o poder-dever de punir do Estado, deverá ser provida de todas as garantias fundamentais do devido processo legal. Ainda no campo de possíveis alterações do Código Penal, é de se reforçar o repúdio às atuais tentativas de tipificar o crime de terrorismo, tendencialmente entornadas à criminalização dos movimentos sociais. Nesse sentido, reforçamos integralmente o teor do Manifesto de repúdio às propostas de tipificação do crime de Terrorismo, assinado por mais do que 130 organizações e movimentos sociais.
6 – Ampliação das Garantias na LEP A Lei de Execução Penal, por sua vez, também reclama reforma, especialmente para conformá-la à Constituição da República.
Nesse sentido, alguns aspectos deveriam ser considerados: judicialização de todos os procedimentos relativos ao cumprimento de pena; regulamentação da revista de visitas, com vedação expressa às chamadas “revistas vexatórias”; ampliação das hipóteses de aplicação de prisão domiciliar, tornando-a instrumento de combate ao desrespeito aos direitos das pessoas presas; revogação do regime disciplinar diferenciado; redução dos lapsos temporais; exclusão do (arbitrário) requisito subjetivo (“bom comportamento carcerário”) para a progressão de regime e para a concessão do livramento condicional; fortalecimento do poder judicial de interdição de unidades prisionais; e detalhamento da atribuição judicial (artigo 66, VII) para a apuração de tortura, maus-tratos e outras graves violações a direitos fundamentais da pessoa presa. Necessário, ademais, seja promovida alteração na LEP para garantir os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, conforme previsão do Eixo I, item 11, do “Acordo de Cooperação para Melhoria do Sistema prisional”. O PL 7977/2010, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, é importantíssimo, mas, a nosso ver, reclama alguns reparos, nos termos das sugestões enviadas alhures e que ora reapresentamos.
7–Ainda no âmbito da LEP: Abertura do cárcere e criação de mecanismos de controle popular
Atualmente, o acesso ao cárcere é quase que circunscrito às atividades de assistência religiosa e, de maneira completamente precária e instável, a atividades acadêmicas e humanitárias, sempre dependentes da autorização do Poder Executivo. No artigo 4º da Lei de Execução Penal, dispõe-se: “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”. Interpretada a partir dos fundamentos constitucionais e dos objetivos fundamentais inscritos nos artigos 1º e 3º da Constituição da República, a expressão “cooperação da comunidade” deve ser compreendida como abertura ao envolvimento da comunidade na equação dos danos produzidos pelo conflito e pela pena, com a possibilidade de restabelecer os laços da pessoa presa com a sua comunidade no decorrer do cumprimento da pena de prisão. Há dois outros dispositivos contidos na LEP que também poderiam ser aplicados a fim de promover a abertura do cárcere para a sociedade: 1) no artigo 23, VII, a atribuição de “orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima”, conferida ao serviço de assistência social, fornece fundamentos suficientes para as equipes de serviço social se empenharem na construção de espaços de encontro da pessoa presa com a pessoa ofendida; 2) no artigo 64, I ,abre-se a possibilidade de o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) estabelecer marco normativo que regulamente e amplie o acesso ao cárcere pela sociedade. No entanto, é fundamental encampar reformas na LEP conducentes à abertura crescente do cárcere à sociedade, com a inclusão da assistência humanitária no rol do artigo 11 e a regulamentação de visitas ao cárcere pela sociedade. Outra importante medida a ser adotada nacionalmente é a obrigatoriedade da criação de Ouvidorias Externas e Independentes, capitaneadas por membros externos à carreira pública escolhidos no âmbito da Sociedade Civil. Apesar de convencionada na Meta 3 do Plano Diretor do Sistema Penitenciário (2008), são poucos os Estados que implementaram Ouvidorias Externas e Independentes do Sistema Prisional.
8 – Vedação à privatização do sistema prisional
É intolerável, absolutamente intolerável, qualquer espécie de delegação da gestão prisional à iniciativa privada. Em primeiro lugar, porque é inconstitucional: de um lado, é indelegável a função punitiva do Estado, eis que atada ao monopólio da força estruturante da República e parte, portanto, dela. Como bem assinala José Luiz Quadros de Magalhães: “para privatizar o Estado e suas funções essenciais privatizando, por exemplo, a execução penal, teríamos que fazer uma nova Constituição”. Por outro lado, punição não é atividade econômica e nem seria admissível que o fosse. A mercantilização da liberdade de pessoas fulmina, no limite, o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Para além da inconstitucionalidade e da patente imoralidade expressa nas tentativas de transformar prisões em negócios, fato é que, também do ponto de vista administrativo, a privatização é uma péssima opção, salvo para iniciativa privada, ávida por auferir altos dividendos com a pena alheia. Ora, parece de todo óbvio que a iniciativa privada não explorará o sistema prisional (ou qualquer outro “ramo” que o Estado permita explorar) sem que lhe seja permitida a extração de taxa de lucro, o que, ao que tudo indica, fará recrudescer os custos com o aprisionamento. No mesmo sentido, é pedagógico o alerta de Antônio Carlos Prado, Editor Executivo da Revista Isto É, em recentíssimo artigo publicado na própria revista: O que pode então parecer, à primeira vista, uma solução para o caótico sistema penitenciário brasileiro guarda armadilhas. Estudos feitos no Brasil apontam que, com a privatização, cada preso custará mensalmente em média R$ 4 mil – quantia que os governos terão de repassar às empresas. Nem no Principado de Mônaco, onde se oferece champanhe no café da manhã (não é ironia, é isso mesmo), um presidiário custa tanto. Será que o prisioneiro, aqui, já não está sendo superfaturado? Se essa é a quantia necessária para mantê-lo, então como explicar que o governo paulista tenha despendido apenas R$ 41 per capita ao longo do último ano? Por que os gestores dos cofres públicos, tão econômicos na questão prisional, tornam-se generosos quando entra em cena a iniciativa privada? É patente que, a despeito dos auspiciosos argumentos relativos às supostas “melhores técnicas de gestão da iniciativa privada”, há um único interesse em jogo aos que defendem a privatização (‘PPPs’ inclusas, sublinhe-se): o lucro de investidores privados. Basta divisar os exemplos de outros países para não claudicar com relação à incontornável inaptidão da iniciativa privada para tornar o sistema prisional algo menos indecente do que ele é. Tanto nos EUA quanto na Inglaterra (conforme se evidencia na tese de doutorado de Laurindo Minhoto), os indicadores apontam para a manutenção, nas unidades privadas, das mazelas que se prometia combater: fugas constantes, mortes ocasionadas por negligência, denúncias de torturas e maus-tratos, rebeliões, entre outras mazelas, foram e são registradas frequentemente nos presídios privados estadunidenses e ingleses. As pontuais experiências de privatização no Brasil não são diferentes. Exemplo mais conhecido vem do Estado do Paraná, cujo antigo Governador, hoje Senador da República, Roberto Requião, delineia e critica categoricamente. Em sessão no Senado, ao rechaçar projeto de lei de privatização dos presídios, o Senador afirmou que, quando assumiu o Governo do Paraná, em 2003, encontrou uma série de presídios privatizados. Segundo ele: eram “presídios sui generis, que exigiam quase um vestibular para admitir o preso. Era uma espécie de Circuito Elizabeth Arden para presos extremamente prestigiados pela estrutura. Só entravam lá condenados que pudessem frequentar a lista de candidatos ao céu, ao panteão dos santos, e a remuneração que esses presos recebiam era uma lição exemplar da ideia da mais-valia. É claro, o modelo não deu certo, e o Estado, na minha administração, retomou esses presídios”. Vale ainda mencionar o insuspeito Paul Krugman, prêmio Nobel de economia e liberal nato, que, em artigo escrito na Folha de São Paulo, motivado por uma série de matérias publicadas no New York Times sobre o sistema prisional privatizado de New Jersey, afirma: “Os operadores privados de penitenciárias só conseguem economizar dinheiro por meio de reduções em quadros de funcionários e nos benefícios aos trabalhadores. As penitenciárias privadas economizam dinheiro porque empregam menos guardas e pagam menos a eles. E em seguida lemos histórias de horror sobre o que acontece nas prisões.” Tem-se, portanto, por inescapável a conclusão pela completa falta de razoabilidade (e de constitucionalidade e moralidade também) em qualquer intento de privatizar o sistema prisional, o que, longe de trazer soluções reais para o povo aprisionado e seus familiares, traria, na realidade, um asqueroso assédio ao Poder Legislativo em busca de mais penas, mais prisões e, portanto, mais lucros. A bem do real interesse público, qualquer investimento em prisões deve repelir a iniciativa privada, vinculando a liberação de verbas federais exclusivamente à implementação de melhorias em unidades prisionais completamente estatais já existentes.
9 – Prevenção e Combate à Tortura Fruto da articulação da sociedade civil organizada, a Lei 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ainda carece de implementação.
Em face da ocorrência de torturas sistemáticas no sistema prisional, constatadas em diversos relatórios (vide, por exemplo: CPI do Sistema Carcerário/2008, Pastoral Carcerária/2010, Mutirão Carcerário do CNJ/2012, entre outros), é urgente a implementação e o aparelhamento do Mecanismo de Prevenção à Tortura, garantindo plenas independência e autonomia, com membros escolhidos entre e pela sociedade civil, sem ingerência do Poder Público. Para além do Mecanismo de Prevenção à Tortura, cumpre estabelecer, como já anotado supra, marco normativo para a especificação da atuação dos órgãos da Execução Penal (em especial, o Juízo da Execução) na atribuição de apurar torturas, maus-tratos e outras violações a direitos fundamentais. Ademais, no desiderato de combater incansavelmente a tortura, prática execrável que remonta aos primórdios da invasão portuguesa ao Brasil, é elementar que se envide esforços para a célere aprovação do Projeto de Lei 554/2011, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, que prevê a realização da chamada “audiência de custódia”. A aprovação de referido projeto adequará a legislação brasileira ao Pacto de São José de Costa Rica, com a imposição da apresentação da pessoa presa ao Juízo competente em 24 horas. Cuida-se de inovação apta não apenas a possibilitar o rápido acesso à Justiça, mas, sobretudo, a coibir a prática de tortura.
10 – Desmilitarização das Polícias e do Sistema Prisional
Por derradeiro, urge promover a desmilitarização definitiva das polícias e da gestão prisional. A lógica militar é norteada pela política de guerra, na qual os pobres, quase sempre pretos, quase sempre periféricos, são eleitos como inimigos e se transformam em alvos exclusivos das miras e das algemas policiais. Entulho deixado pela ditadura civil-militar que ainda permeia nosso cotidiano, o militarismo das polícias brasileiras é fator determinante para a alta taxa de letalidade da nossa polícia e, igualmente, para o processo de encarceramento em massa, a tal ponto que a própria ONU já recomendou ao Brasil que desmilitarize suas polícias. Sobre a necessidade de promover a desmilitarização das polícias, Túlio Viana afirma: “O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”. Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios”. A desconstrução do modelo de guerra intrínseco ao militarismo, que – com exceção da previsão de polícias municipais – parece estar bem delineada na PEC 53/2013 (de autoria do Senador Lindbergh Farias), é fundamental para a construção de política abrangente de redução do Estado Penal, na medida em que tal modelo expressa elemento violento e autoritário de alta incidência nas comunidades mais vulneráveis.
No mais, a política de desmilitarização deve também se estender ao sistema prisional. É imperativa “a erradicação da militarização da gestão, da vigilância interna e de serviços penais, exceto os guarda externa e escolta, nos termos das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos”, assim como devem ser rechaçadas as propostas de transformação da carreira de agentes prisionais em “polícia penitenciária”, em clara distorção à função de tutela (e não de repressão) dos quadros do sistema penitenciário.
Igualmente rechaçáveis são as propostas que autorizam o porte de arma fora de serviço aos agentes penitenciários federais e estaduais, em especial a contida no PL 6565/2013, enviada pela Presidenta da República ao Congresso Nacional, que está, como a própria Presidência afirmou em vetos anteriores, “na contramão da política nacional de combate à violência e em afronta ao Estatuto do Desarmamento”. Como bem ponderado em nota pública da Pastoral Carcerária: “É fundamental que o porte de armas de fogo fique restrito às instituições com mandato para atuar na Segurança Pública, instituições capazes de estabelecer mecanismos adequados de controle e treinamento de seus agentes. Além disso, vale esclarecer que a concessão de porte de armas aos agentes prisionais já é possível, desde que comprovada sua efetiva necessidade e atendimento dos requisitos previstos na lei (como atestado de capacidade técnica e psicológica)”.
A Reversão do Encarceramento em Massa como Eixo Condutor da Presente Proposta O principal eixo e, ao mesmo tempo, objeto do Programa ora proposto é, indubitavelmente, a reversão do encarceramento em massa e, portanto, a redução gradativa e substancial da população prisional do país. Todas as demais medidas não são exaustivas e compõem política ampla que tem, ao fim e ao cabo, apenas dois objetivos: reduzir a população prisional e garantir às pessoas presas e a seus familiares o mínimo de dignidade e de sociabilidade, apesar do cárcere.
Por uma vida sem grades; por grades menos Desumanas
Por um mundo sem grades, por grades menos desumanas, afirmamos, de forma contundente, em coro às companheiras e companheiros presentes no I Encontro Nacional dos Conselhos da Comunidade: NENHUMA VAGA A MAIS! Espera-se que, a partir da proposta ora apresentada, construa-se política sólida, sem remendos, que seja apta a atacar na integralidade a grande chaga que representa o sistema penal às massas de marginalizados e periféricos desse país. Em respeito à memória dos ao menos 111 que tombaram pelas mãos do Estado no denominado Massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, e de tantas centenas de outras pessoas presas mortas pelos massacres cotidianos do cárcere, somos irredutíveis na exigência de uma política integral de reversão do encarceramento em massa e da degradação carcerária.
Assinam:
MÃES DE MAIO
PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL
CNBB
INSTITUTO PRÁXIS DE DIREITOS HUMANAS MARGENS CLÍNICAS
Fonte: http://carceraria.org.br/pastoral-carceraria-e-entidades-apresentam-agenda-para-a-politica-prisional.html#sthash.lIkDgQhj.dpuf
A Pastoral Carcerária, as Mães de Maio, o Instituto Práxis e o Margens Clínicas reuniram-se com alguns ministros do governo federal, em 30 de outubro, e entregaram uma nota em que defendem a criação de um programa nacional de desencarceramento e a abertura do cárcere para a sociedade.
A nota indica que em 20 anos, a população carcerária do país aumentou em 380% e há uma constante degradação do sistema prisional, com violação dos direitos básicos da população carcerária.
O documento sinaliza, também, que “para além das medidas apresentadas na ‘Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas’ atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos”, e indica diretrizes a serem seguidas.
Abaixo segue a íntegra da nota.
Por um programa nacional de desencarceramento e de abertura do cárcere para a sociedade
Como se sabe, o Brasil ostenta o nada honroso quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária no mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia), com mais de 550 mil pessoas presas. Entre 1992 e 2012, a população carcerária brasileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil pessoas presas: recrudescimento de 380% (DEPEN). No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 30% (IBGE).
Conjuga-se gravemente com esse processo de encarceramento em massa a degradação do sistema prisional, consubstanciada na violação dos direitos mais básicos da população carcerária: apenas 10% têm acesso a alguma forma de educação; somente 20% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil, com quadro técnico exíguo e diversos casos de graves doenças e até de óbitos oriundos de negligência; as unidades são superlotadas: o Brasil ostenta a maior taxa de ocupação prisional (172%) entre os países considerados “emergentes”; torturas e maus-tratos campeiam, com a conivência dos órgãos responsáveis por fiscalizar as unidades prisionais.
Ao caráter massivo do encarceramento no Brasil soma-se o caráter seletivo do sistema penal, expresso na discriminação de bens protegidos e de pessoas alvejadas: de um lado, apesar das centenas de tipos penais constantes da legislação, cerca de 80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio (e congêneres) ou pequeno tráfico de drogas; de outro, apesar da multiplicidade étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe social e territórios daquelas que, historicamente, estão às margens do processo civilizatório brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e pretas.
A seletividade penal tem ainda outro viés, mais grave e violento: a criminalização das mulheres. Apesar de o número de mulheres presas corresponder a cerca de 8% do total da população carcerária, sabe-se que, nos últimos dez anos, houve aumento de cerca de 260% de mulheres presas contra aumento de aproximadamente 105% de homens presos.
O caráter patriarcal do sistema penal revela traços extremamente cruéis e sintomáticos do machismo elevado à máxima potência.
O recrudescimento da população prisional feminina deriva da assunção por centenas de milhares de mulheres pobres (quase sempre negras) de trabalhos precários e perigosos na cadeia de comercialização de psicotrópicos, tornando-as principal alvo da obtusa guerra às drogas, eis que mais expostas e vulneráveis.
Bom lembrar que a maioria esmagadora das mulheres presas por tráfico de drogas é composta por pequenas comerciantes ou mesmo por meras usuárias (fenômeno também observado entre os homens) e que não são raros os casos de separação violenta e ilegal dessas mulheres de seus filhos. Também não são raros os casos de mulheres que, presas durante a gravidez, ou perdem a criança por falta de cuidados médicos, ou dão à luz algemadas!
É de se mencionar, também, a penalização de mulheres familiares de pessoas presas. Nas filas de visita, a revista vexatória perdura, vergonhosamente, como prática estatal para penalizar e humilhar familiares, geralmente mulheres, que viajam longas distâncias para visitar o ente querido preso, quando não são dissuadidas pelos próprios presos de enfrentar essa prática abjeta.
O contato com a realidade do sistema penal, como se percebe, traz a clareza de que há evidente processo de criminalização patriarcal da maternidade e da ocupação do espaço público por mulheres.
A todas essas mazelas, adiciona-se ainda mais uma: a violação sistemática do direito fundamental à presunção de inocência. Ninguém ignora que, juridicamente, somente é culpada aquela pessoa que, acusada pelo cometimento de determinado crime, teve direito a um processo justo e a todas as vias recursais até que a condenação se torne definitiva. Na prática, todavia, prevalece a punição antecipada, configurada na verdadeira farra das prisões cautelares: cerca de 43% da população prisional brasileira ainda não tem condenação definitiva! Em outros termos, quase metade da população prisional brasileira é juridicamente inocente!
O quadro apresentado sintetiza um pouco dos horrores do sistema prisional brasileiro, mas é insuficiente para traduzir o que apenas o contato direto com a realidade pode ensinar: cárcere não é lugar de gente.
O Supremo Ministro, então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Excelentíssimo Sr. Cezar Peluso, já criticara em março de 2011 o sistema penitenciário do país e chegou a comparar algumas prisões às “masmorras medievais”. “Isso é um crime do Estado contra o cidadão brasileiro”, disse ele, durante seminário de segurança pública promovido pela Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). O próprio atual Ministro da Justiça assumiu publicamente isso, pouco tempo depois de assumir o posto que ainda ocupa: “Se fosse para cumprir muitos anos em uma prisão nossa, eu preferiria morrer”, disse durante um encontro com empresários paulistas, fazendo a mesma alusão ao caráter de “terríveis masmorras medievais” das prisões brasileiras.
Em face do nítido caráter seletivo, classista e racista do sistema penal, cumpre a um Governo que se quer comprometido com as camadas populares, com as pessoas mais humildes e exploradas desse país, envidar todos os esforços para reverter o processo de encarceramento em massa e pôr freios ao sistema penal. É necessário, urgentemente, fechar as comportas do sistema penal e estancar as “veias abertas” do sistema prisional brasileiro com a adoção de medidas efetivas de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos enquanto houver prisões. Nesse sentido, para além das medidas apresentadas na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas” atinentes, direta ou indiretamente, ao sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de redução de danos, composto pelas seguintes diretrizes:
1 – Revogação do programa nacional de apoio ao sistema prisional
O cerne do Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lançado em meados do segundo semestre de 2011, é o empenho de cerca de 1 bilhão e 100 milhões de reais para a construção de novas unidades prisionais em todo o país, com duas metas principais: “zerar o déficit de vagas feminino e reduzir o número de presos em delegacias de polícia, transferindo para cadeias públicas”. Tal Programa, no entanto, é manifestamente equivocado. Ainda que atingidas as metas do plano (construção de 42,5 mil novas vagas), sequer se supriria, por exemplo, o déficit carcerário do Estado de São Paulo, de cerca de 90 mil vagas em 2012 e que, a cada mês, tem o acréscimo, em média, de 10.000 pessoas inclusas (contra cerca de 6.000 egressas). A superlotação não deriva da ausência de políticas para a construção de presídios (nos últimos 20 anos, o Brasil saltou de 60 mil vagas para 306 mil vagas prisionais), mas sim, bom iterar, das prisões abusivas, ilegais e discriminatórias executadas contra as pessoas mais pobres desse país e do exagerado investimento em políticas repressivas em detrimento de políticas sociais. A construção de presídios não apenas é inábil ao objetivo de aplacar a superlotação carcerária, como também serve de fomento às prisões. De acordo com David Ladipo, pesquisador do sistema prisional estadunidense, “quando as prisões estão superlotadas, há maior pressão sobre os juízes para serem mais seletivos na imposição de sentenças de encarceramento. Quando a capacidade das prisões aumenta, parte dessa pressão diminui”. O Governo Federal deve imediatamente cessar qualquer política de construção de presídios para priorizar políticas que, de fato, são aptas a equacionar os principais problemas atinentes ao sistema carcerário. O “Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional” é um erro e reclama urgente revogação, sob pena de contribuir ainda mais para a expansão do sistema e da população prisionais.
2 – Pacto Republicano para construção de plano plurianual de redução da população prisional e dos Danos Causados pela Prisão
No lugar de um programa com metas para a construção de presídios, propõe-se pacto republicano entre os três poderes e entre os entes federativos para a construção de metas voltadas à redução da população prisional e de suas mazelas e à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos. No que toca à redução da população prisional e de suas mazelas, bom lembrar que o Governo Federal conta com importante expediente para impulsionar a redução da população prisional: o indulto. Trata-se de prerrogativa constitucional atribuída à Presidência da República (conforme artigo 84, XII, CR) que deve ser mais amplamente utilizada para enfrentar o encarceramento em massa, a exemplo da corajosa proposta recentemente apresentada pelo Presidente italiano para liberar 24 mil presos do também superlotado sistema prisional da Itália. É de extrema importância, ademais, a inclusão do sistema prisional entre as prioridades nas políticas de ampliação de oferta de vagas de ensino e de aumento do número de médicos em locais carentes, considerando, inclusive, a chegada de profissionais estrangeiros, no âmbito das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Programa “Mais Médicos”.
Com relação à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos egressos, sugere-se que a construção das metas seja guiada pelos seguintes pontos elencados pela Pastoral Carcerária:
1) levantamento prévio e detalhado da situação, das necessidades e das dificuldades encontradas pelos egressos, bem como consultas democráticas e construção participativa de políticas voltadas para essa população; 2) implementação de trabalho de conscientização territorial e comunitário a fim de superar os efeitos danosos causados pelo encarceramento; 3) integração dos diversos componentes territoriais em rede; 4) programa integral de atenção aos egressos individualizado, respeitando os distintos grupos sociais e com políticas voltadas para as minorias; 5) respeitar as especificidades do atendimento das mulheres egressas; 6) garantia de célere atendimento à pessoa egressa, de preferência já no limiar de sua saída; 7) formação adequada das polícias e outros agentes de segurança pública para que saibam como trabalhar com esta população; e 8) produção permanente de dados e acompanhamento das políticas implementadas.
Ainda no âmbito da política para pessoas egressas, vale replicar importante apontamento do documento da Pastoral Carcerária: “Trata-se de uma questão da qual o Plano Juventude Viva, que busca reduzir os índices de vulnerabilidade e, consequentemente, de mortalidade da população jovem e negra nas cidades brasileiras não pode se furtar, já que a passagem pelo sistema prisional aumenta a vulnerabilidade da pessoa e retira, ainda mais, sua dignidade e sua cidadania.” O Plano Plurianual de Redução da População Prisional e dos Danos Causados Pela Prisão aqui proposto poderia ser pactuado e reajustado anualmente, observados o permanente acompanhamento das políticas de atendimento às pessoas egressas e a realização de visitas conjuntas a todas unidades prisionais do país, com a garantia ampla participação da sociedade civil, a fim de detectar o cumprimento de suas diretrizes, de promover a liberação de pessoas presas ilegalmente e de identificar, apurar e sanar eventuais violações de direitos.
3 – Alterações legislativas para a máxima Limitação da aplicação de prisões cautelares
Como já afirmado, apesar de vigorar no Brasil o princípio constitucional da presunção de inocência, cerca de 43% da população prisional ainda não tem condenação definitiva. Os mutirões empolgados pelo CNJ têm demonstrado, reiteradamente, o excessivo número de prisões ilegais e abusivas. Nesse contexto, é fundamental que o Governo se empenhe em articular, junto à sua base aliada no Congresso Nacional, alterações legislativas que abarque, no mínimo: a) a exclusão das hipóteses de decretação de prisão preventiva “como garantia da ordem pública ou da ordem econômica”, “em face da extrema gravidade do fato” e “diante da prática reiterada de crimes pelo mesmo autor” (as duas últimas hipóteses são retrocessos inclusos no PLS 156/2009); b) a ampliação dos casos em que a decretação da prisão preventiva é vedada; c) a redução do prazo máximo da prisão preventiva prevista no anteprojeto de Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional – PLS 156/2009 (de acordo com o qual a prisão preventiva poderá perdurar por até 720 dias).
4 – Contra a criminalização do Uso e Comércio de Drogas
No âmbito da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, alega-se, na defesa do programa “Crack é Possível Vencer”: Embora a violência urbana não seja resultante exclusivamente do uso abusivo de drogas e de seu comércio, ela esta intimamente relacionada com esta agenda. A asserção é parcialmente verdadeira. A violência urbana, na verdade, não está intimamente ligada com o uso e o comércio de drogas, mas, mais precisamente, com a criminalização do uso e do comércio de drogas. De acordo com Maria Lúcia Karam, a criminalização do comércio de drogas, longe de inibi-lo, carreia à sociedade o “subproduto” da violência: seja para enfrentar a repressão, seja para resolver conflitos de concorrência, os comerciantes de drogas têm na violência o meio necessário para garantir seus negócios. De outra perspectiva, a política de “guerra às drogas” traz impactos imensos ao sistema carcerário e é determinante na construção de carreiras criminais entre jovens pobres das periferias. O número de pessoas presas por tráfico mais do que triplicou entre 2005 e 2011, passando de 31.520 para 115.287. O modelo atual (cujo marco legal é a Lei 11.343/2006), além de não atingir o objetivo de evitar a utilização de entorpecentes, agrava o problema, eis que as pessoas presas sob acusação de tráfico são, em regra, aquelas que estão na base da hierarquia do comércio de entorpecentes: pessoas pobres (geralmente primárias), residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio vício. Conforme já apontado, a política de combate às drogas é ainda mais cruel quando se trata das mulheres: mais do que a metade da população prisional feminina é composta de mulheres acusadas por crime de tráfico de drogas. Já passa do tempo de romper com a deletéria guerra estadunidense contra as drogas (e, por via oblíqua, contra os periféricos) e elevar o enfrentamento aos efeitos nocivos do uso de entorpecentes ao patamar de política de saúde e de educação públicas.
5 – Contração Máxima do Sistema Penal e Abertura para a Justiça Horizontal
Para Luigi Ferrajoli, Direito Penal mínimo é aquele “condicionado e limitado ao máximo” e que “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza”. Adotar o parâmetro do Direito Penal mínimo denota, portanto, o estabelecimento de caminhos os mais estreitos para o sistema penal, de tal modo que ele não transborde as limitações constitucionais e legais cuja aplicação poderia lhe emprestar alguma legitimidade. Nesse sentido, em vista da existência de dois anteprojetos de Código Penal em debate nas duas Casas Legislativas e da necessidade de restringir a pena de prisão ao menor número de casos possível, pleiteia-se empenho do Governo para a abolição da pena de prisão: nos crimes de menor potencial ofensivo; nos crimes punidos com detenção; nos crimes de ação penal de iniciativa privada; nos crimes de perigo abstrato; e nos os crimes desprovidos de violência ou grave ameaça. Faz-se necessária, ademais, mudança na regra geral estampada no artigo 100, § 1º, do Código Penal, pela qual, salvo disposição contrária (e são raras as disposições contrárias), a ação penal é pública e incondicionada. No tópico relativo à “Justiça Comunitária” da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, firma-se o objetivo de “estimular comunidades a construir seus próprios caminhos para a realização da Justiça, de forma pacífica e solidária”. No entanto, enquanto viger a regra geral do artigo 100, § 1º, do Código Penal, a vítima e sua comunidade, no mais das vezes, terão sempre papéis irrelevantes na condução do processo institucional de responsabilização. Quando muito, servirão de prova testemunhal, cujas vontades e necessidades são desprezíveis no âmbito do processo penal. Com o fim de minimamente descongestionar os espaços amplamente ocupados pelo sistema penal vigente, convém alterar a redação do artigo 100, § 1º, do Código Penal para inverter a regra geral: a ação penal passa a ser pública condicionada, salvo disposição contrária. De modo que a pessoa lesada, sempre que se sentir contemplada por outros meios de construção de justiça, poderá abdicar da intervenção penal. Raciocínio homólogo vale para o sistema penal juvenil. Apesar de já contar com dispositivo que tem aberto relativo espaço para a aplicação de práticas restaurativas (artigo 126 do ECA e artigo 35 do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), o procedimento depende da discricionariedade do Ministério Público e nada tem de horizontal ou comunitário, vez que ainda institucionalizado e, portanto, submetido ao peso e à verticalidade da jurisdição. Melhor seria que os processos para a apuração de ato infracional dependessem, igualmente, de expressa manifestação da pessoa lesada. Assim, facultada à pessoa lesada a decisão por representar ou não para a promoção da ação penal ou infracional, possibilita-se a abertura de canais comunitários de resolução consensual e não punitiva do conflito. Obviamente, caso seja promovida a representação, a pessoa acusada, ora perante o poder-dever de punir do Estado, deverá ser provida de todas as garantias fundamentais do devido processo legal. Ainda no campo de possíveis alterações do Código Penal, é de se reforçar o repúdio às atuais tentativas de tipificar o crime de terrorismo, tendencialmente entornadas à criminalização dos movimentos sociais. Nesse sentido, reforçamos integralmente o teor do Manifesto de repúdio às propostas de tipificação do crime de Terrorismo, assinado por mais do que 130 organizações e movimentos sociais.
6 – Ampliação das Garantias na LEP A Lei de Execução Penal, por sua vez, também reclama reforma, especialmente para conformá-la à Constituição da República.
Nesse sentido, alguns aspectos deveriam ser considerados: judicialização de todos os procedimentos relativos ao cumprimento de pena; regulamentação da revista de visitas, com vedação expressa às chamadas “revistas vexatórias”; ampliação das hipóteses de aplicação de prisão domiciliar, tornando-a instrumento de combate ao desrespeito aos direitos das pessoas presas; revogação do regime disciplinar diferenciado; redução dos lapsos temporais; exclusão do (arbitrário) requisito subjetivo (“bom comportamento carcerário”) para a progressão de regime e para a concessão do livramento condicional; fortalecimento do poder judicial de interdição de unidades prisionais; e detalhamento da atribuição judicial (artigo 66, VII) para a apuração de tortura, maus-tratos e outras graves violações a direitos fundamentais da pessoa presa. Necessário, ademais, seja promovida alteração na LEP para garantir os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, conforme previsão do Eixo I, item 11, do “Acordo de Cooperação para Melhoria do Sistema prisional”. O PL 7977/2010, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, é importantíssimo, mas, a nosso ver, reclama alguns reparos, nos termos das sugestões enviadas alhures e que ora reapresentamos.
7–Ainda no âmbito da LEP: Abertura do cárcere e criação de mecanismos de controle popular
Atualmente, o acesso ao cárcere é quase que circunscrito às atividades de assistência religiosa e, de maneira completamente precária e instável, a atividades acadêmicas e humanitárias, sempre dependentes da autorização do Poder Executivo. No artigo 4º da Lei de Execução Penal, dispõe-se: “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”. Interpretada a partir dos fundamentos constitucionais e dos objetivos fundamentais inscritos nos artigos 1º e 3º da Constituição da República, a expressão “cooperação da comunidade” deve ser compreendida como abertura ao envolvimento da comunidade na equação dos danos produzidos pelo conflito e pela pena, com a possibilidade de restabelecer os laços da pessoa presa com a sua comunidade no decorrer do cumprimento da pena de prisão. Há dois outros dispositivos contidos na LEP que também poderiam ser aplicados a fim de promover a abertura do cárcere para a sociedade: 1) no artigo 23, VII, a atribuição de “orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima”, conferida ao serviço de assistência social, fornece fundamentos suficientes para as equipes de serviço social se empenharem na construção de espaços de encontro da pessoa presa com a pessoa ofendida; 2) no artigo 64, I ,abre-se a possibilidade de o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) estabelecer marco normativo que regulamente e amplie o acesso ao cárcere pela sociedade. No entanto, é fundamental encampar reformas na LEP conducentes à abertura crescente do cárcere à sociedade, com a inclusão da assistência humanitária no rol do artigo 11 e a regulamentação de visitas ao cárcere pela sociedade. Outra importante medida a ser adotada nacionalmente é a obrigatoriedade da criação de Ouvidorias Externas e Independentes, capitaneadas por membros externos à carreira pública escolhidos no âmbito da Sociedade Civil. Apesar de convencionada na Meta 3 do Plano Diretor do Sistema Penitenciário (2008), são poucos os Estados que implementaram Ouvidorias Externas e Independentes do Sistema Prisional.
8 – Vedação à privatização do sistema prisional
É intolerável, absolutamente intolerável, qualquer espécie de delegação da gestão prisional à iniciativa privada. Em primeiro lugar, porque é inconstitucional: de um lado, é indelegável a função punitiva do Estado, eis que atada ao monopólio da força estruturante da República e parte, portanto, dela. Como bem assinala José Luiz Quadros de Magalhães: “para privatizar o Estado e suas funções essenciais privatizando, por exemplo, a execução penal, teríamos que fazer uma nova Constituição”. Por outro lado, punição não é atividade econômica e nem seria admissível que o fosse. A mercantilização da liberdade de pessoas fulmina, no limite, o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Para além da inconstitucionalidade e da patente imoralidade expressa nas tentativas de transformar prisões em negócios, fato é que, também do ponto de vista administrativo, a privatização é uma péssima opção, salvo para iniciativa privada, ávida por auferir altos dividendos com a pena alheia. Ora, parece de todo óbvio que a iniciativa privada não explorará o sistema prisional (ou qualquer outro “ramo” que o Estado permita explorar) sem que lhe seja permitida a extração de taxa de lucro, o que, ao que tudo indica, fará recrudescer os custos com o aprisionamento. No mesmo sentido, é pedagógico o alerta de Antônio Carlos Prado, Editor Executivo da Revista Isto É, em recentíssimo artigo publicado na própria revista: O que pode então parecer, à primeira vista, uma solução para o caótico sistema penitenciário brasileiro guarda armadilhas. Estudos feitos no Brasil apontam que, com a privatização, cada preso custará mensalmente em média R$ 4 mil – quantia que os governos terão de repassar às empresas. Nem no Principado de Mônaco, onde se oferece champanhe no café da manhã (não é ironia, é isso mesmo), um presidiário custa tanto. Será que o prisioneiro, aqui, já não está sendo superfaturado? Se essa é a quantia necessária para mantê-lo, então como explicar que o governo paulista tenha despendido apenas R$ 41 per capita ao longo do último ano? Por que os gestores dos cofres públicos, tão econômicos na questão prisional, tornam-se generosos quando entra em cena a iniciativa privada? É patente que, a despeito dos auspiciosos argumentos relativos às supostas “melhores técnicas de gestão da iniciativa privada”, há um único interesse em jogo aos que defendem a privatização (‘PPPs’ inclusas, sublinhe-se): o lucro de investidores privados. Basta divisar os exemplos de outros países para não claudicar com relação à incontornável inaptidão da iniciativa privada para tornar o sistema prisional algo menos indecente do que ele é. Tanto nos EUA quanto na Inglaterra (conforme se evidencia na tese de doutorado de Laurindo Minhoto), os indicadores apontam para a manutenção, nas unidades privadas, das mazelas que se prometia combater: fugas constantes, mortes ocasionadas por negligência, denúncias de torturas e maus-tratos, rebeliões, entre outras mazelas, foram e são registradas frequentemente nos presídios privados estadunidenses e ingleses. As pontuais experiências de privatização no Brasil não são diferentes. Exemplo mais conhecido vem do Estado do Paraná, cujo antigo Governador, hoje Senador da República, Roberto Requião, delineia e critica categoricamente. Em sessão no Senado, ao rechaçar projeto de lei de privatização dos presídios, o Senador afirmou que, quando assumiu o Governo do Paraná, em 2003, encontrou uma série de presídios privatizados. Segundo ele: eram “presídios sui generis, que exigiam quase um vestibular para admitir o preso. Era uma espécie de Circuito Elizabeth Arden para presos extremamente prestigiados pela estrutura. Só entravam lá condenados que pudessem frequentar a lista de candidatos ao céu, ao panteão dos santos, e a remuneração que esses presos recebiam era uma lição exemplar da ideia da mais-valia. É claro, o modelo não deu certo, e o Estado, na minha administração, retomou esses presídios”. Vale ainda mencionar o insuspeito Paul Krugman, prêmio Nobel de economia e liberal nato, que, em artigo escrito na Folha de São Paulo, motivado por uma série de matérias publicadas no New York Times sobre o sistema prisional privatizado de New Jersey, afirma: “Os operadores privados de penitenciárias só conseguem economizar dinheiro por meio de reduções em quadros de funcionários e nos benefícios aos trabalhadores. As penitenciárias privadas economizam dinheiro porque empregam menos guardas e pagam menos a eles. E em seguida lemos histórias de horror sobre o que acontece nas prisões.” Tem-se, portanto, por inescapável a conclusão pela completa falta de razoabilidade (e de constitucionalidade e moralidade também) em qualquer intento de privatizar o sistema prisional, o que, longe de trazer soluções reais para o povo aprisionado e seus familiares, traria, na realidade, um asqueroso assédio ao Poder Legislativo em busca de mais penas, mais prisões e, portanto, mais lucros. A bem do real interesse público, qualquer investimento em prisões deve repelir a iniciativa privada, vinculando a liberação de verbas federais exclusivamente à implementação de melhorias em unidades prisionais completamente estatais já existentes.
9 – Prevenção e Combate à Tortura Fruto da articulação da sociedade civil organizada, a Lei 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ainda carece de implementação.
Em face da ocorrência de torturas sistemáticas no sistema prisional, constatadas em diversos relatórios (vide, por exemplo: CPI do Sistema Carcerário/2008, Pastoral Carcerária/2010, Mutirão Carcerário do CNJ/2012, entre outros), é urgente a implementação e o aparelhamento do Mecanismo de Prevenção à Tortura, garantindo plenas independência e autonomia, com membros escolhidos entre e pela sociedade civil, sem ingerência do Poder Público. Para além do Mecanismo de Prevenção à Tortura, cumpre estabelecer, como já anotado supra, marco normativo para a especificação da atuação dos órgãos da Execução Penal (em especial, o Juízo da Execução) na atribuição de apurar torturas, maus-tratos e outras violações a direitos fundamentais. Ademais, no desiderato de combater incansavelmente a tortura, prática execrável que remonta aos primórdios da invasão portuguesa ao Brasil, é elementar que se envide esforços para a célere aprovação do Projeto de Lei 554/2011, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, que prevê a realização da chamada “audiência de custódia”. A aprovação de referido projeto adequará a legislação brasileira ao Pacto de São José de Costa Rica, com a imposição da apresentação da pessoa presa ao Juízo competente em 24 horas. Cuida-se de inovação apta não apenas a possibilitar o rápido acesso à Justiça, mas, sobretudo, a coibir a prática de tortura.
10 – Desmilitarização das Polícias e do Sistema Prisional
Por derradeiro, urge promover a desmilitarização definitiva das polícias e da gestão prisional. A lógica militar é norteada pela política de guerra, na qual os pobres, quase sempre pretos, quase sempre periféricos, são eleitos como inimigos e se transformam em alvos exclusivos das miras e das algemas policiais. Entulho deixado pela ditadura civil-militar que ainda permeia nosso cotidiano, o militarismo das polícias brasileiras é fator determinante para a alta taxa de letalidade da nossa polícia e, igualmente, para o processo de encarceramento em massa, a tal ponto que a própria ONU já recomendou ao Brasil que desmilitarize suas polícias. Sobre a necessidade de promover a desmilitarização das polícias, Túlio Viana afirma: “O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”. Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios”. A desconstrução do modelo de guerra intrínseco ao militarismo, que – com exceção da previsão de polícias municipais – parece estar bem delineada na PEC 53/2013 (de autoria do Senador Lindbergh Farias), é fundamental para a construção de política abrangente de redução do Estado Penal, na medida em que tal modelo expressa elemento violento e autoritário de alta incidência nas comunidades mais vulneráveis.
No mais, a política de desmilitarização deve também se estender ao sistema prisional. É imperativa “a erradicação da militarização da gestão, da vigilância interna e de serviços penais, exceto os guarda externa e escolta, nos termos das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos”, assim como devem ser rechaçadas as propostas de transformação da carreira de agentes prisionais em “polícia penitenciária”, em clara distorção à função de tutela (e não de repressão) dos quadros do sistema penitenciário.
Igualmente rechaçáveis são as propostas que autorizam o porte de arma fora de serviço aos agentes penitenciários federais e estaduais, em especial a contida no PL 6565/2013, enviada pela Presidenta da República ao Congresso Nacional, que está, como a própria Presidência afirmou em vetos anteriores, “na contramão da política nacional de combate à violência e em afronta ao Estatuto do Desarmamento”. Como bem ponderado em nota pública da Pastoral Carcerária: “É fundamental que o porte de armas de fogo fique restrito às instituições com mandato para atuar na Segurança Pública, instituições capazes de estabelecer mecanismos adequados de controle e treinamento de seus agentes. Além disso, vale esclarecer que a concessão de porte de armas aos agentes prisionais já é possível, desde que comprovada sua efetiva necessidade e atendimento dos requisitos previstos na lei (como atestado de capacidade técnica e psicológica)”.
A Reversão do Encarceramento em Massa como Eixo Condutor da Presente Proposta O principal eixo e, ao mesmo tempo, objeto do Programa ora proposto é, indubitavelmente, a reversão do encarceramento em massa e, portanto, a redução gradativa e substancial da população prisional do país. Todas as demais medidas não são exaustivas e compõem política ampla que tem, ao fim e ao cabo, apenas dois objetivos: reduzir a população prisional e garantir às pessoas presas e a seus familiares o mínimo de dignidade e de sociabilidade, apesar do cárcere.
Por uma vida sem grades; por grades menos Desumanas
Por um mundo sem grades, por grades menos desumanas, afirmamos, de forma contundente, em coro às companheiras e companheiros presentes no I Encontro Nacional dos Conselhos da Comunidade: NENHUMA VAGA A MAIS! Espera-se que, a partir da proposta ora apresentada, construa-se política sólida, sem remendos, que seja apta a atacar na integralidade a grande chaga que representa o sistema penal às massas de marginalizados e periféricos desse país. Em respeito à memória dos ao menos 111 que tombaram pelas mãos do Estado no denominado Massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, e de tantas centenas de outras pessoas presas mortas pelos massacres cotidianos do cárcere, somos irredutíveis na exigência de uma política integral de reversão do encarceramento em massa e da degradação carcerária.
Assinam:
MÃES DE MAIO
PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL
CNBB
INSTITUTO PRÁXIS DE DIREITOS HUMANAS MARGENS CLÍNICAS
Fonte: http://carceraria.org.br/pastoral-carceraria-e-entidades-apresentam-agenda-para-a-politica-prisional.html#sthash.lIkDgQhj.dpuf
5 comentários:
QUE PIADA
roubar, matar não é desumano...
vão proteger o cidadão de bem.
DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS.
OU SERÁ DIREITOS DOS MANO...
“Quem a Pastoral Carcerária acha que engana.” Concordo que a função do agente penitenciário deve ser exercida por servidores púbicos concursados e cuja escolaridade exigida deveria ser nível superior. Contudo, discordo que as funções de muralha e escolta de presos sejam feitas por militares, todas as funções que envolvam o sistema devem ser exercidas por agentes concursados.
Os agentes exercem a segunda profissão mais perigosa do mundo, então, fazem jus ao porte de arma fora de serviço, só isso é suficiente para a concessão, então, parabéns Presidenta Dilma, somente os criminosos querem os agentes penitenciários desprotegidos.
O princípio da presunção de inocência (da não culpa) não significa dizer que a pessoa seja culpada ou inocente, ele é uma regra de tratamento de não-culpa enquanto não ocorrer o trânsito em julgado, o que não impede diante de provas claras da pessoa ser presa antes do trânsito em julgado, pois não é razoável e proporcional adiar uma prisão que será executada no final, mas havendo dúvida deve responder o processo em liberdade.
O direito penal mínimo não significa impunidade, então, é necessário saber a finalidade do direito penal segundo o funcionalismo teleológico e sistêmico. O funcionalismo sistêmico (de Jakobs – caveirão do mal) leva ao direito penal do inimigo e ao direito penal máximo, mas o extremo ocasiona lesões a conquistas fundamentais. O funcionalismo teleológico (de Claus Roxin) leva ao direito penal do cidadão (assegurar as garantias constitucionais durante o processo penal), bem como ao direito penal mínimo surgido do princípio da intervenção mínima composto pela subsidiariedade e fragmentariedade, segundo o qual, o direito penal só deve intervir quando a CRFB/88 determinar que o bem jurídico seja fundamental e necessite da devida proteção pelo direito penal, pois esse ramo deve ser sempre a última via, uma vez que, é o mais severo de todos por limitar a liberdade, além disso, a lesão deve ser significante surgindo o princípio da bagatela ou da insignificância como exclusão da tipicidade, MAS ISSO, NÃO SIGNIFICA IMPUNIDADE COMO O TEXTO ESTÁ QUERENDO IMPOR, pois a Pastoral através da sua falsa interpretação do direito penal mínimo está propondo uma destruição de todos os presídios mediante a colocação de todos os criminosos nas ruas para, então, voltarmos a uma sociedade em que tudo se pode e o criminoso jamais poderá ser preso, voltaremos ao mundo primata e quem sabe ao inquisitismo.
A função do agente penitenciário não se confunde com a do professor, do assistente social, do médico, do dentista e outros funcionários que compõem o corpo de ressocialização. As funções dos agentes penitenciários são: manterem a vigilância interna e externa dos presídios, evitarem fugas, rebeliões e condutas ilegais, prenderem aqueles que tentem resgatar os presos ou entrem com objetos ilícitos, realizarem os transportes e as escoltas dos presos, recapturarem os presos foragidos, realizarem investigações inerentes ao sistema penitenciário, “VERIFICAR SE AS REGRAS DE RESSOCIALIZAÇÃO DOS PRESOS ESTÃO SENDO CUMPRIDAS PELOS PROFISSIONAIS A QUEM CABE, VERDADEIRAMENTE, A RESSOCIALIZAÇÃO DOS PRESOS e outras funções. O problema é que as pessoas confundem fiscalização com a função em si. O agente penitenciário nunca foi ou será um ressocializador “DIRETO”, mas sim “INDIRETO”, pois cabe a ele fiscalizar se as diretrizes em torno da ressocialização estão sendo cumpridas pelos profissionais competentes. A função primordial do sistema penitenciário é fazer com que o preso cumpra sua pena de forma digna, segundo os mecanismos de ressocialização e através de profissionais específicos, pois o agente penitenciário exerce um misto de funções que vão desde a função policial até a função ressocializadora, porém, esta NÃO É EXERCIDA DE FORMA “DIRETA”, MAS SIM DE FORMA “INDIRETA” PELO AGENTE, seja fiscalizando o cumprimento das diretrizes de ressocialização ou denunciando às autoridades a falta desses profissionais ou de iniciativas que impedem a ressocialização do preso.
SEM COMENTÁRIOS SOBRE ESSAS BABOSEIRAS, PASTORAL E CORJA, VÃO PRCURAR O QUE FAZER!
aposto que tem os tentáculos do pcc nessa pastoral... só querem favorecer os bandidos e pior o governo acata....vergonha esse país lixo.............
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