Vindas de todo o País, mensagens escritas pelos próprios presos representam 23% dos pedidos de habeas corpus concedidos pelo Supremo Tribunal Federal
Bruna Cavalcanti e Adriana Nicacio
Todo domingo a família do metalúrgico aposentado João Cardoso de Moraes, 54 anos, se reúne para o almoço. Em torno da mesa, seu João, sua mulher, Seni, os filhos Tatiana, Sarah, Thiago e João conversam de forma descontraída. Um assunto, porém, é evitado: os quase três anos que ele passou no Centro de Detenção Provisória 3 de Pinheiros, em São Paulo. “Todos nós tentamos esquecer”, afirma seu João. Sem antecedentes criminais, ele foi acusado em 2004 de ser o mandante de dois assassinatos e de uma tentativa de homicídio na cidade onde mora, Mauá, na região metropolitana de São Paulo. Preso em dezembro de 2006, seu João conta que os primeiros meses foram os piores: “Foi como se o teto de uma casa tivesse caído em cima da minha cabeça. Bateu um desespero”, lembra, chorando. O infortúnio de seu João durou 1.065 dias. Só acabou três meses depois de ele enviar um pedido de habeas corpus, escrito à mão, ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Não se trata de um caso isolado. Dos pedidos de liberdade feitos ao mais alto tribunal do País, 23% chegam por meio de correspondência redigida pelos próprios presos, a maior parte deles cumprindo pena ou esperando julgamento em estabelecimentos prisionais dos Estados de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.
Cartas provenientes de presídios sempre chegaram ao STF. Na maioria das vezes, eram simplesmente desconsideradas. Em outras, ficavam esquecidas, tomando poeira em armários do tribunal. Em maio de 2008, porém, essa situação mudou, com a criação de um canal direto com o Supremo, a Central do Cidadão. “Começamos a verificar o conteúdo de todas as cartas que recebíamos e observamos que o tratamento dado à maioria delas era muito pobre”, lembra o secretário-adjunto Marcos Alegre Silva, um dos coordenadores do serviço, rebatizado recentemente de Atendimento STF. Atualmente, uma equipe de 14 pessoas faz a triagem e dá encaminhamento à correspondência, que soma uma média de 1,5 mil cartas por mês, 27% delas de presos. “Quando demos início a este serviço, o volume de cartas que recebíamos não era tão grande quanto o que temos hoje”, afirma Marisa Alonso, coordenadora do Atendimento STF.
Seu João decidiu escrever ao Supremo depois de passar mais de dois anos e meio na cadeia, aguardando julgamento. Sem entender absolutamente nada de leis, ele dedicou o tempo ocioso que tinha na prisão aos livros de direito que caíam em suas mãos. “Lá, o que mais o preso tem é tempo para pensar. Por isso, corri atrás e fui estudar”, diz ele, que concluiu apenas o ensino fundamental. “Em pouco tempo, aprendi como redigir um pedido de liberdade e a quem deveria encaminhar o meu recurso.” Seu João contou ainda com a ajuda de um colega de cela, já acostumado a escrever cartas e petições para outros presos. Como ocorre com frequência em presídios brasileiros, por causa da carência de defensores públicos, há presos que se especializam na atividade. “Alguns escrevem muito bem e viram os escribas da cadeia”, comenta o secretário-adjunto do Atendimento STF. Há até aqueles que transformam a atividade em fonte de renda. Não foi o caso do companheiro de cela de seu João. Depois de vender bens, contrair dívidas e investir cerca de R$ 100 mil em honorários de advogados, ele gastou menos de R$ 30 para despachar sua correspondência para o STF.
Um dos trechos da carta de seu João reflete o drama vivido atrás das grades, sem julgamento. “O tempo permanecido no cárcere enquanto aguarda a morosidade do Judiciário paulista, mesmo sendo absolvido posteriormente, ficará como uma mácula insculpida na sociedade como ‘ex-presidiário’, não havendo indenização que poderá sanar este mal”, escreveu. A iniciativa de seu João emocionou sua mulher, que sempre acreditou na inocência do marido, mas já havia perdido a esperança na Justiça. “Ele era a coluna da casa. Quando ele foi preso, fiquei sem chão. Sobrevivemos graças ao artesanato que ele fazia na cadeia e que eu vendia aqui fora. Só confiava mesmo na lei de Deus”, relata Seni, cujo filho mais novo tem hoje 10 anos. Menos de três meses após o pedido chegar ao Supremo, o habeas corpus de seu João foi concedido e ele foi solto. “Não acreditei quando mandaram me soltar. Não conseguia calçar o sapato, vestir a roupa nem pensar em nada. A ficha não caía. As pessoas me chamavam de louco, mas eu sabia que conseguiria”, diz.
Dos 4.700 habeas corpus concedidos pelo Supremo no ano passado, 1.200 tiveram como ponto de partida a correspondência de presos. Nem todas as medidas determinadas pelo tribunal, porém, estão vinculadas a pedidos de liberdade. Da mesma forma, nem todas as cartas envolvem clamor por liberdade ou reclamações quanto à morosidade no andamento dos processos. Há muita denúncia de maus-tratos nos presídios, requisição de transferência de presídio, pedido de defesa por defensor público e até elogios à atuação de ministros do Supremo. “Recebemos muito material interessante, inclusive agradecimentos”, diz um dos responsáveis pelo serviço do STF. “Uma vez um preso escreveu que ficou tão emocionado quando recebeu uma resposta nossa que chorou, pois não acreditava que seria ouvido.”
Embora acreditasse que um dia conseguiria sair da cadeia, seu João às vezes duvidava que seu pedido de habeas corpus, julgado pela Segunda Turma do Supremo, fosse culminar numa mensagem do ministro Celso de Mello ao Tribunal de Justiça de São Paulo, determinando que aguardasse “em liberdade o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória”. Além dessa vitória, hoje João também é considerado um homem inocente. O julgamento, pelo qual aguardou durante quase três anos na cadeia, aconteceu em junho deste ano. A maioria do júri o absolveu das acusações de duplo homicídio qualificado e da tentativa de homicídio. Agora o que ele e sua família mais querem é esquecer o tempo perdido e tocar a vida. “Depois que voltei para casa, passei um mês sem comer e sem dormir direito. O meu filho menor, Joãozinho, ficou traumatizado com tudo o que aconteceu. Nenhum dinheiro vai trazer de volta os dias que perdi ou reverter o dano psicológico que ficou”, diz. Mesmo tentando deixar o passado para trás, seu João sente na pele o preconceito da sociedade e o estigma de ser um ex-presidiário. Depois que ganhou a liberdade, ele começou a trabalhar com compra e venda de automóveis. “No começo, as pessoas me evitavam e foi muito difícil. Agora, as coisas estão se acalmando, embora sinta que muita gente me rejeita”, admite. “Às vezes eu finjo para mim mesmo que durante todo esse tempo que estive fora eu estava na faculdade. E, realmente estava. Era a faculdade da vida.”