Trinta adolescentes infratores mortos nas mãos do Estado
Ministério Público denuncia precariedade do sistema socioeducativo em Minas Gerais
Fernando Zuba e Clarissa Carvalhaes - Repórteres - 31/01/2011 - 03:30
LUCAS PRATES
Parentes e agentes socioeducativos reclamam do tratamento dado aos jovens no Ceip Dom Bosco
Nos últimos três anos, 30 adolescentes infratores morreram sob responsabilidade do poder público em Minas Gerais. Destes, pelo menos 18 foram assassinados enquanto estavam encarcerados ilegalmente em cadeias ou presídios. Outros 11 homicídios ocorreram no interior de Centros de Internação Provisória (Ceips). Em 2009, a Rede Nacional de Defesa do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade) fez levantamento que identificou a existência de 208 adolescentes privados de liberdade em unidades prisionais em todo o Estado.
De acordo com a promotora Andréa Mismotto Carelli, que coordena o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude de Minas Gerais (CAO/IJ), farta documentação comprova que, entre 2008 e 2010, nove adolescentes foram assassinados enquanto estavam presos ilegalmente em cadeias ou presídios.
Mas o número de óbitos pode dobrar. A promotoria investiga a morte de mais nove adolescentes que estavam em estabelecimentos de privação de liberdade mantidos pelo poder público. "Estamos concluindo este diagnóstico, que também vai apontar quantos adolescentes com sentenças condenatórias a cumprir estão em liberdade", disse a promotora. O levantamento indica que 11 adolescentes foram assassinados enquanto estavam recolhidos em Ceips e uma menina foi morta em regime de semiliberdade.
O objetivo do trabalho, esclarece Carelli, é ajuizar ações coletivas para compelir o Estado a construir novos centros de internação provisória e definitiva. No ano passado, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República divulgou levantamento de atualização do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, realizado pela Renade, que apontou Minas Gerais como sendo o Estado que registrou o maior número de adolescentes encarcerados em unidades prisionais, 208, até 2010.
Segundo a promotora, se por um lado existem prisões irregulares, por outro há impunidade e conivência. "Em determinadas comarcas, a Justiça não permite que menores sejam presos em cadeias. No entanto, uma vez que o sistema não oferece centros especializados para internações provisórias ou definitivas, os adolescentes infratores são colocados em liberdade", revelou Carelli, citando como exemplo o município de Ribeirão das Neves, Grande BH. "Adolescentes de alta periculosidade que cometeram crimes hediondos, como assassinatos e estupros, convivem normalmente em sociedade, como se nada tivesse acontecido", advertiu.
Para a promotora, a situação contribui para aumentar o número de ocorrências envolvendo adolescentes, pois gera a sensação da certeza da impunidade. De acordo com a Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), em 2010, o Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA/BH) registrou 9.850 atendimentos de jovens a quem se atribuiu a autoria de ato infracional, ante 9.645 no ano anterior, um crescimento de 2,1%.
Faltam vagas para internação
O promotor de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude Márcio Rogério de Oliveira informou que, entre 2008 e 2010, quatro adolescentes infratores foram assassinados no Centro de Internação Provisória (Ceip) Dom Bosco, localizado no Bairro Horto, Região Leste da capital. “Todas as mortes ocorreram por homicídio, dentro dos próprios alojamentos, e os autores foram internos que dividiam os cômodos com as vítimas”, denunciou.
O promotor acredita que as mortes poderiam ter sido evitadas. Ele considera que o principal problema do local é a superlotação, causada pela falta de vagas em centros socioeducativos de internação definitiva.
A unidade tem atualmente capacidade para recolher cem adolescentes, no entanto funciona com picos de 150. Além disso, o número de defensores públicos é insuficiente para atender à demanda. “Os adolescentes não têm uma assistência jurídica adequada”, disse.
Quem convive com os internos dos centros socioeducativos e provisórios também denuncia o problema. “Ali é a sucursal do inferno”, afirma L.M.N., 16 anos, que foi visitar o namorado no Ceip Dom Bosco. Ela conta que há 90 dias o namorado aguarda por um defensor público. Segundo a secretária executiva da Frente de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente em Minas Gerais, Maria Alice da Silva, nos primeiros seis meses de 2010 nenhum defensor havia comparecido ao local para qualquer tipo acompanhamento.
A Defensoria Pública Especializada da Infância e Juventude-Ato Infracional informou que dispõe apenas de três defensores, diferentemente da magistratura, que conta com seis juízes, e do Ministério Público, que tem sete promotores para atuar em cerca de 17 mil processos de medidas socioeducativas e cerca de 600 audiências por mês.
Recentemente, foi concluído um concurso público no qual foram aprovados 210 candidatos, restando apenas autorização do Governo estadual para nomeação e posse dos mesmos, o que, segundo a Defensoria, minimizará a escassez de defensores públicos estaduais.
Precariedade no interior do Estado
Na 2ª Delegacia Distrital de Betim, na Grande BH, há pelo menos dois anos, um banheiro se transformou em alojamento improvisado para adolescentes apreendidos. A irregularidade foi denunciada pela Pastoral do Menor ao Ministério Público. “Eles permaneciam de uma semana a seis meses no local. Não tomavam sol, nem realizavam atividades”, lembra a coordenadora nacional da Pastoral do Menor, Marilene Cruz.
Na quarta-feira da semana passada, o mesmo espaço abrigava 11 adolescentes. A delegada Cristiane Ferreira Lopes confirma que os agentes que trabalham com os adolescentes não são capacitados. “Eles foram preparados para lidar com adultos”, diz.
A Prefeitura de Betim afirma que já cedeu ao Estado uma área próxima ao Ceresp, onde será construído o primeiro Centro de Ressocialização do Menor do município. “Desde novembro, aguardamos a aprovação do projeto de lei que legaliza a doação da área do município ao Estado”, diz o secretário municipal de Governo, Renato Siqueira.
No Centro Socioeducativo São Jerônimo, no Bairro Horto, em BH, que abriga somente meninas, uma agente denuncia que é comum levar, sozinha, adolescentes para eventos externos, como cursos, transferência de unidade, audiências, consultas médicas. “Já deixei o Centro com quatro adolescentes de uma só vez. Imagine: eu, o motorista e quatro jovens internas. Se elas quisessem fugir, se houvesse um resgate ou retaliação, eu não poderia fazer nada”, diz.
Em Governador Valadares, um agente afirma que, por plantão, a média é de 13 profissionais para a supervisão de 40 adolescentes. “Ficamos sobrecarregados e com medo de retaliação. Em 2010 foram duas rebeliões que tivemos que controlar no braço”, recorda.
Concurso para agente sai em 2012
Na última sexta-feira, a convite do subsecretário de Atendimento às Medidas Socioeducativas da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), Ronaldo Araújo Pedron, a reportagem do Hoje em Dia entrou no Centro de Internação Provisória (Ceip) Dom Bosco. Mas não foi permitido o contato com os adolescentes apreendidos e fontes internas informaram que o local foi “maqueado”. “Mandaram deixar tudo bonitinho para vocês”, disse um funcionário.
Atualmente, Minas oferece 1.200 vagas para jovens infratores em 29 unidades (casas de semiliberdade, centros socioeducativos e provisórios). Desde 2008, o Estado promete ampliação das vagas e dos centros. Em 2009, uma unidade de internação definitiva começou a ser construída ao lado do Ceip Dom Bosco. A previsão de entrega da obra, que está atrasada, é para o dia 20 de fevereiro.
Segundo o subsecretário, até o primeiro semestre de 2012, um centro socioeducativo orçado em R$ 11 milhões será inaugurado em Unaí, no Noroeste do Estado. “Estão previstas as construções de mais três centros, na Grande BH, no Sul de Minas e no Vale do Aço”, afirmou Pedron.
No Estado, conforme o Sindicato dos Agentes Socioeducativos, 1.600 profissionais são responsáveis pela segurança de 1.200 jovens nos centros de internação. “Evidente que o número de adolescentes supera a disponibilidade das vagas. A falha na segurança começa aí”, disse o presidente da entidade, Alexandre Canella, que não descarta paralisações dos agentes, em protesto contra o Estado.
O sindicato pede contratação de agentes e sugere que os profissionais possam trabalhar armados. O subsecretário Pedron afirma que está previsto para 2012 um concurso para agentes, mas descarta o uso de armas nos centros de internação. “Temos câmeras que monitoram o local, não é preciso ir além, considerando que há três anos não registros de rebelião, nem fuga no Ceip”, afirmou.